Publicamos, aqui em nosso blog, com exclusividade para quem nos acompanha, o texto de apresentação do Pena de Ouro 2020: o Livro dos Finalistas (na íntegra!). O e-book pode ser adquirido clicando aqui. O livro impresso estará disponível em breve. Boa leitura!
Apresentação
por Cândido Luís Vasques
O livro que o leitor tem em mãos é o resultado de um longo processo. Desde a ideia, a concepção, do Prémio Internacional Pena de Ouro, até a sua execução, houve muita inspiração e transpiração; ideias aventadas, ideias aproveitadas e ideias descartadas; mudanças de rumos; sugestões; possibilidades e impossibilidades; avanços e digressões. Não foi um processo linear.
Nós, da organização, agora podemos dizer: na maior parte do tempo, andamos no escuro; arriscamo-nos! Não sabíamos o que havia pela frente; e nem havia como saber... Mas, mesmo assim — e por mais que usar uma imagem épica aqui possa soar um tanto cômico... —, tal como os portugueses um dia se lançaram ao mar sem saber o que encontrariam pela frente, nós também nos lançamos ao nosso projeto, sem saber quais desafios encontraríamos.
No final, com muito alívio, cá nos encontramos para divulgar que deu tudo certo. Conseguimos juntar muita gente: muita gente boa, muita gente interessante! Desde os jurados até os selecionados, sejam eles os finalistas ou semifinalistas; sem contar os outros tantos que ficaram de fora, pois não havia espaço. E como havia bons candidatos inscritos!
Confesso que, após termos conseguido o excelente corpo de jurados, o meu temor residia mais naquilo que concerne à qualidade do que à quantidade dos textos inscritos. Poderíamos, sim, não ter uma boa resposta do público — e a resposta foi excelente! —; porém, não termos textos bons o suficiente entre os candidatos... Ah, eis a preocupação que me roubou algumas noites de sono!
Felizmente, foi uma preocupação infundada. O problema acabou por se revelar justamente o inverso. Porque, em vez de poucos textos de qualidade, tivemos muitos! Este livro é uma prova disso.
Trata-se de um livro heterogêneo. Contamos com vários estilos, vários temas, vários dramas, conteúdos, usos da linguagem... Várias concepções de poesia e de narrativa curta; enfim, vários contos e poemas.
Vamos a eles. Comecemos pela categoria POEMA, cujos textos, em tese, devem perseguir direta e objetivamente aquilo que é o cerne e o sublime da linguagem humana: a poesia.
Entre os nossos finalistas, podemos encontrar poemas curtos, como o texto POESIA MODERNA — Caos de metalinguagem, em que o eu-lírico aborda um tema bem moderno, pós-moderno ou contemporâneo (como queiram), que é até onde chega a especulação humana no campo da arte poética (e, por que não, a especulação filosófica?). Leio, nele, a fadiga, o beco sem saída a que podemos chegar depois de cultuar tantas vanguardas e revoluções artísticas e morais.
Engana-se quem pensa que um poema curto “vale” menos do que um poema comprido; não há regras para isso. E a síntese também é uma arte difícil...
Mas não só este poema trata da metalinguagem ou de temas mais filosóficos. Em à procura do vazio que instaura o poema, do poeta Meriva Pinheiro — único candidato que conseguiu emplacar dois textos entre os finalistas da categoria —, a respeito da poesia, do ofício do poeta, lemos que
nenhum axioma é inteiro o bastante
pelo menos uma lei não se aplica à teoria
pelo menos uma teoria não se aplica à ciência
O mesmo Meriva continua a sua reflexão no seu outro poema, também profundo, também filosófico, o poeta e a poética. Não o cito aqui, pois julgo que este texto guarda uma unidade tão interessante, que vale mais a pena lê-lo na íntegra (sem spoilers!).
Por outro lado, também podemos encontrar poemas com a forma fixa do soneto, como o leitor deparar-se-á em Angústia de Narciso, em que o poeta se vale da forma para dar força aos seus versos. O primeiro quarteto ilustra o que eu digo:
Devo ser eu mesmo em todos os tempos,
Devo ser todos num único instante,
A ter-me em metades, compartimentos,
Para ausentar-me da amorfia d’antes.
Nele, percebe-se o domínio e maestria no manejo da forma, não sendo o autor, Márcio Castilho, um escravo dela, mas alguém que recorre a ela para atingir as alturas da poesia de um eu-lírico que exprime a sua angústia íntima — e humana.
Também contamos com poemas em que sobressai a imagem criada, seja ela uma imagem clara, que salta e se exibe aos sentidos do leitor; ou uma imagem mais embaçada, onírica e complicada, que nos faz sonhar e viajar.
Quanto ao primeiro caso, vejamos este exemplo de uma poesia... Como eu poderia dizer? Dominical? Na qual sentimos todo o torpor e peculiaridade dos domingos, em que diz o poeta, e diz bem:
Domingos já nascem no passado,
já nascem fadados ao fim,
já nascem às três horas da tarde.
O seu título não poderia ser melhor: Flores paradas no tempo... E seu arremate também, que vale trazer aqui:
Todos os domingos são museus,
são lembranças,
é a distância entre uma esperança de mudança
e a lama,
o fim de uma trama,
o começo de outra semana,
um outro domingo...
Já quanto ao segundo caso, temos uma imagem imprecisa e nuviosa desde o título, em Pindorama Nebulosa. Quando leio seus versos, meus sentidos e intelecto parecem-me embriagados... de uma boa embriaguez:
Não havia dias, nem mesmo segundos
Ou relógio que apontasse primeiros e últimos
Nem lua ou sol, só um céu de estrelas nascentes
Fugitivas do tempo em redemoinhos entorpecentes
[...]
Figuras serpenteavam alucinadamente
E se não fosse o bom senso dos outros sentidos
Guiando-me os olhos ao etéreo compelidos
Poderia acreditar que era uma miragem do que transcende
Embriagante, não? A poesia a transcender, a alucinar, e a bagunçar o bom senso dos sentidos...
Também podemos encontrar poemas com outras imagens, imagens outonais, digamos assim, que muito bem se apoiam na propriedade melódica da língua, gerando um lirismo cativante. Refiro-me ao poema Outono, do jornalista Túlio Milman, que resolveu se aventurar pela literatura. Cumpre-me, aqui, transcrever os versos finais — sem prejuízo para a leitura do todo —, onde, em minha modesta opinião, reside a força do poema (na imagem criada e nos sons e melodia que a sustentam com uma bela rima rica):
O cacho
Cochicha,
Como
Se maduro
Fosse:
“Só queria que o
tempo
Me desse
tempo
De ser doce”.
Versos ternos e singelos... que também se passam num domingo — como não poderia deixar de ser.
Outro texto que, em minha apreciação pessoal, se funda bastante na imagem criada, e que também pode ser classificado como terno e singelo, é o do português Nelson Ferraz. Encontro nele uma poesia afável, bonita, que comove pela sua simplicidade e menção à inocência perdida, a um mundo infantil e ideal, uma “redoma”, como do título; algo celestial, onde
as coisas todas não precisavam
de ser explicadas. tinham luz.
Esse poema transporta-me a tempos idílicos da minha imaginação (que se existiram ou não, não importa)... Pura poesia. Não é à toa que agradou tanto aos jurados, ficando em segundo lugar. E mais não cito, para não estragar o efeito.
Antes de tratar dos últimos poemas, cabe uma digressão. Eu gostaria que o leitor soubesse que estimo muito aquela tese exposta por Ezra Pound, em seu ABC of Reading, de que a “Grande Literatura” é simplesmente “language charged with meaning to the utmost possible degree”[1]; e, também, comungo da ideia de que o fenômeno de se carregar as palavras com sentido/significado se dá basicamente de três maneiras ou por elas pode ser explicado: phanopoeia, melopoeia, logopoeia.
Longe de ser senhor da razão, dou, destarte, minha interpretação pessoal para essa mensagem de Pound. Em outras palavras — e trazendo para a poesia —, é como se houvesse três modalidades de alcançar um sentido maior (de carregar as palavras de mais sentido):
a) uma que se dá pela imagem (phanopoeia);
b) outra, pelo som/melodia (melopoeia);
c) e a última, pelo grupo de palavras; pela ideia ou argumento, como muitos interpretam (logopoeia).
Essa última, não posso deixar de associar a uma concepção de meu caríssimo Fernando Pessoa, ou, melhor dizendo — bem melhor dizendo —, de seu heterônimo, Ricardo Reis: a poesia sendo a música que se faz com as ideias. Interessante essas visões convergentes, de Reis e Pound, não acha? Mas isso alguém já deve ter percebido e escrito, muito antes e muito melhor do que eu.
Penso, também, que não é comum encontrarmos uma “pureza” de cada modalidade. Alguns poemas que se pautam pela imagem, podem chegar à logopoeia; o mesmo pode ocorrer com aqueles que se apoiam no som para alcançar sua razão de ser, seu sentido; quando não uma mistura das três modalidades, todas aliadas para um efeito comum.
E, ainda, também penso que não devemos reduzir a poesia à logopoeia — por mais que seja tentador, em um primeiro momento, querer determiná-la como a forma mais elevada de poesia... São apenas três vias. Ou, melhor, apenas três palavras que tentam traduzir, tentam deixar mais claro, o funcionamento da poesia, a qual, por sua vez, é sempre mágica, e transcende qualquer teoria.
E assim chego à razão desta digressão.
Acontece que os últimos poemas de que restam tratar aqui, os quais ficaram entre os primeiros colocados, são, a meu ver, melhor analisados pura ou majoritariamente pela lente do conceito de logopoeia. Pois são como que música feita com ideias. Penso ser essa a melhor forma de entendê-los. Tanto é que, se ficarmos apenas na “superfície”, um, o vencedor, Dois passos, do poeta Sebastião Burnay, possui versos irregulares até mesmo em sua extensão na página; e outro, Caminho, Insólito Caminho, nem possui o “desenho”, por assim dizer, que um poema costuma ter numa página impressa. Mas nem por isso é prosa; nem por isso é ilegível; nem por isso deixa de contar como poesia — boa poesia.
Está bem, admito. Não deveria, mas admito. Se eu fosse eleger um vencedor, eu escolheria esse último. Foi o poema que mais me tocou. Mas a poesia é algo pessoal, é algo subjetivo. Ainda que possa ser avaliada, ainda que também seja algo sublime... Nunca deixa de ser pessoal. Foi esse motivo, aliás, que nos fez convidar tantos jurados diferentes. Queríamos uma avaliação consistente.
Acredito que conseguimos; estou bastante, bastante mesmo, satisfeito com o resultado. Ainda que, verdade seja dita, todos os finalistas poderiam ter vencido, sem causar escândalo. Não só eles: os semifinalistas também. É pena não haver lugar para tantos...
Bem, os poemas são esses. Espero ter instigado a curiosidade do leitor. Antes de ir para os contos, cabe dizer outra coisinha. Os primeiros poemas mencionados também se caracterizam pela logopeia, não é mesmo? Agora que foi trazido um pouco de teoria, proponho um exercício interessante: o que você pensa de cada um? De cada poema? Qual melhor se explica pela a phanopoeia? E qual pela melopoeia? E logopoeia? Como a phanopoeia mistura-se com a logopoeia? Fica o convite; pensemos nisso ao realizarmos a leitura.
Mas vamos ao que interessa. Devo falar sobre os textos, devo apresentá-los... e não divagar ou propor exercícios!
E o que interessa é que a safra dos contos foi igualmente ótima. Quanto a eles, também se pode constatar o que há pouco afirmei a respeito dos poemas: qualquer um poderia ter vencido o prêmio, sem escândalo. E antes que alguém me aporrinhe perguntando o meu favorito, já digo: foi o conto Sax, do Sr. Rod Roldan-Roldan...
Aqueles mais atentos terão percebido de pronto; trata-se do mesmo autor do poema de que mais gostei — o que poderia dar ensejo à suposição de que, talvez por alguma razão inconsciente, ao ver esse nome nas duas categorias, eu já o tenha estimado de antemão... Mas, acredite se quiser, eu li todos os textos finalistas da mesma maneira que o júri internacional os leu: sem receber indicação de autoria. E realmente gostei, me identifiquei; me encantei por esses textos!
Em verdade, o galardão da categoria CONTO, pelo meu gosto, ficaria entre o que realmente ganhou (Trezentos e sessenta graus) e os dois que dividiram a segunda posição (Primitivo e Sax). Mas é difícil julgar (dificílimo!); e, agora que o júri já deu o seu veredito, é fácil falar...
Também gostei muito de O Jardim Essencial, de Depoimento de Uma Prostituta e de A mortalha: o linho. E de A entrada de Virgulino Ferreira no bando do Sinhô Pereira... Ah, eu sou um falastrão mesmo, não é? Vou acabar citando todos!
Pois bem; tendo em vista minhas preferências, dou graças a Deus que não sou o júri. Primeiro, porque eu teria uma dúvida dos diabos! Segundo, porque, se eu concedesse o galardão para a mesma pessoa nas duas categorias... Iriam me acusar de nepotismo ou algo semelhante. Só que perceba, você que me lê, percebam, vocês todos, uma coisa: o Rod Roldan-Roldan, ao se classificar entre os finalistas, passou pelo crivo de jurados internacionais e, em ambas as categorias, ficou entre os primeiros colocados. Se isso não atesta seu talento de maneira ilibada e independente, não sei mais o que atestaria.
Enfim, estou falando muito de uma pessoa só, porque me empolguei; temos de ir adiante. Mas, antes que eu prossiga, cumpre-me dizer outra coisa, em nome da organização: o júri dos finalistas recebeu os textos sem autoria, é verdade; porém-contudo-no-entanto-todavia... caso houvesse algum texto conhecido por eles, de autoria conhecida, não haveria nada que nós pudéssemos fazer: pois não foi exigido ineditismo. É uma questão de lógica; isso constava desde o início no regulamento. Também não penso que saber a autoria influenciaria alguma coisa, mesmo que inconscientemente, tendo em vista o que conheço dos nossos queridos jurados.
Bem; dito isso, vamos lá.
Assim como nos poemas, há uma diversidade interessante nos contos. Nos temas, no estilo, na extensão, na linguagem empregada...
Pode-se encontrar narrativas que são tão humanas, em seu sofrimento, em sua condição, ainda que, em certos momentos, pareçam um soco no estômago! Refiro-me ao conto Sax e ao Depoimento de Uma Prostituta, de mesma cepa. E outras, também humanas, também sofridas, só que de outra forma, de outro estilo — e muito bem escritas. Vejamos, como um antegosto, o início de A mortalha: o linho, o qual ilustra um pouco o que estou falando:
Entramos de repente nessa estrada. Não desemboca em lugar quase nenhum. Nem sequer deixa crescer o lento mato seco que se espraia em cada ribanceira. Falar em nada é o que se passa. Escolhemos caminhar ao lado, e de lado, digo de lado com a dor, a dor coloquial, ausente e presente. Não é possível que ele não pense nisso. Não acredito que ela não pense nisso. Antes de fecharmos a casa, de passar o ferrolho, tapar a caixa d´água, estação difícil para perder abastecimento, olhei pro feixe de lenha colocado no paiol, suspenso na tapera. Estava como enganchado para queimar depois. A morte talhada e que arderá em fogo.
Perdoe-me a empolgação, mas que primor de início; amei o estilo desse conto! Muito, muito bem escrito!
E repare nesta bela, mas triste passagem, melancólica e verdadeira ao remeter à nossa inexorável circunstância, à humana sina, da passagem do tempo, encontrada no conto O Cartão:
Infelizmente nem tudo pode ser recuperado. O tempo não recicla dias felizes. Ele é um duende travesso a esconder das sílfides o aroma delicioso das flores raras. O mito do paraíso perdido é o da infância, e o homem, há muito, se afastara dela.
Enxergo — sinto — muita compreensão da condição humana, da trágica condição humana, nesses textos, além de muitos elementos que evidenciam, de um lado, grande vivência e, de outro, larga intimidade e convivência com a arte literária. Esses textos podem ser densos, podem ser profundos, em várias abordagens (seja na forma, na técnica literária; seja no conteúdo, na maturidade).
Aliás, podemos encontrar outras narrativas densas, mas bem densas; de outras maneiras, densas...; e bem profundas... Como O Jardim Essencial. Reconheço que este texto exigiu bastante da minha imaginação e da minha cognição. Duvida? Pois veja como ele começa:
No início era a floresta.
Sobre todos os universos, mundos, leis e sistemas havia O Pensamento. A meditação inteligente, prenhe de sentido e significado, que a tudo cria, que a tudo origina e para onde tudo retorna.
Foi nessa chama primordial, vital — desabrochada das trevas em luz e se fazendo floresta —, que iniciou a nossa história.
Começou numa semente.
De tão fecunda em intenções, um dia resolveu expandir seus reinados.
Fantástico, não é mesmo? Eu adorei. E assim vai, o texto segue. Não é qualquer cabeça para conceber uma coisa dessas. E o autor — o Sr. Caesar Charone — está de parabéns, viu!
Há também textos mais introspectivos, narrados em primeira pessoa, como Uso a palavra para compor meus silêncios e Eu & Eu ou Monólogo Dialogal. O primeiro começa assim:
Oito horas. Ingeri a bupropiona logo após o café da manhã, além das vitaminas para cabelos e unhas, C, D 50.000 U, zinco, DHEA, 5-HTP e por último o termogênico. Desceram pela garganta sem dificuldade. Há tanto tempo repetindo este ritual, meu corpo realiza os movimentos para levar os comprimidos à boca sem que eu me dê conta, tomada por outras reflexões, chegam em ondas. Sozinha, incapaz de manter o equilíbrio. Sair da letargia é um sacrifício que costuma durar dias.
Mamãe repetindo o tempo todo que desfilo com a cara emburrada. Não se espera que uma criança, aos cinco anos, não distribua sorrisos por onde passa. Ninguém desconfia de algo errado? [...]
E, o segundo, assim:
Ao ser feita, num desvio que a ciência não explica, a genética incluiu na minha mistura a totalidade de meus genitores. Sou meu pai e sou minha mãe, desigualdade na qual sofro como vítima. Se por instantes a nobreza do meu pai me domina, consigo ser cordata e mansa, mas quando é mamãe que assume minha direção, fico irritada e mesquinha. Felizmente suas humanidades eram medianas, sem extremos, razão por que, sem ultrapassar as fronteiras da normalidade, dou motivo para ser considerada “estranha”, nada mais que isso. Pois imagino não ser raro, a pessoa se perguntar o que fez para me encontrar assim, para mais ou para menos.
Apenas lhe atiço a curiosidade, leitor; para que tenha vontade de continuar a leitura. Percebe-se uma personalidade forte, um interior vivo, uma rica intimidade — ainda que possa ser sofrida — nesses textos, no narrador desses textos. E sempre, penso eu, vale a pena, conhecer um interior profundo; sempre vale a pena ter um interior profundo, ainda que o preço pago por essa profundidade e sensibilidade seja o sofrimento...
Por outro lado, contamos também com narrativas pouco ou nada intimistas, que nos conduzem pela história que está sendo narrada, pela aventura. É o caso de A entrada de Virgulino Ferreira no bando do Sinhô Pereira; e do vencedor da categoria, Trezentos e sessenta graus.
Nem preciso dizer a que esse tal Virgulino remete, preciso? Ah, e como gostei do modo como a variante linguística é empregada nesse texto! Não esqueça, leitor, de reparar...
Já o nosso grande vencedor, por sua vez, também tem tema semelhante; se passa em algum lugar nas brenhas da Paraíba, em 1930... Digo tema semelhante porque a mim, de cara, em ambos os textos, tudo remete à “Civilização do Couro”, e a todos os estereótipos que logo vêm no raso da mente, desatentamente... Mais não digo para evitar spoilers.
Aliás, digo só isto: são contos bem diferentes, é verdade; bem distintos; que, não obstante, trazem em comum não a possível e vaga associação a temas nordestinos — seja do cangaço, seja do Território Livre de Princesa —, mas, sim, o fato de serem narrativas cativantes, que nos conduzem com leveza, com curiosidade, até o desfecho; que pegam na mão do leitor com facilidade... E não soltam mais.
Por fim, não mencionei ainda uma narrativa peculiar: Primitivo. Julgo-a muito bem construída, surpreendente... E ficamos por aqui. Repito: não quero estragar nada. De certos poemas eu revelei o final, ou algum outro trecho, pois não estragaria o efeito, justamente pela natureza de seu gênero; já com os contos, que são histórias, que são narrativas, é diferente... Mas vejamos o início:
Ricardo ouvia distraído a ladainha do tio internado.
— Não ignorem os mamutes!
Convém, leitor, não os ignorar!
[1] Em tradução bastante livre e ampla: “língua/linguagem carregada de significado/sentido no mais alto grau possível”.
Comments