SOBRE O AUTOR
Cássio Zanatta nasceu em São José do Rio Pardo (SP), o que explica muita coisa. Tem três livros de crônicas publicados: A Menor Importância, O Espantoso Nisso Tudo e O Máximo Que Eu Consegui, todos pela Editora Realejo.
A CRÔNICA FINALISTA
O sumiço dos telhados
Erguem um prédio aqui, outro mais adiante e, quando a gente vê, a quadra virou que é só prédio. Ou edifício, que parecer ser mais chique, ainda mais precedendo algum nome como Avignon, Positano Palace ou Golden Garden (ai, como somos jecas).
Entendo que muita gente quer morar por essas bandas, e é preciso acomodar todo mundo. Mas o problema não só é o fim das casas e dos jardins das casas, mas é igualmente grave o sumiço dos telhados.
Há cada vez menos telhados, percebam. De telhas unidas no heroico esforço de proteger as famílias do vento, da chuva, dos bichos e das coisas que (ô desânimo) as janelas altas dos prédios insistem em atirar lá de cima. Pelo visto, as telhas andam tão obsoletas quanto a boa educação, e isso merece ser um assunto para o Plano Diretor da cidade. Não sei ao certo do que cuida o Plano Diretor, mas o tema é urgente.
Os telhados têm funções importantíssimas. Por exemplo: amparar as bolas que os garotos pernas de pau chutam por cima do gol. Sem os telhados, as bolas caem direto na rua, atingem os carros (e, no desigual confronto de forças, são destroçadas por eles), quando não a cabeça de um pobre que passa e quase morre de susto – quando não empacota mesmo. Aí, o sujeito (o sobrevivente) se queixa aos pais do perna de pau e este fica de castigo no quarto. E moleque trancado costuma dar em coisa que não presta, como rabiscos nas paredes, experiências com fogo, Bombril e aerossol, ou cortinas usadas como redes que se estufam nos chutes fortes.
Prejudicados também ficam os gatos, que costumam passear no telhado, de lá vigiar as redondezas e, nas noites românticas, namorar nas telhas como motéis a céu aberto. Depois, a população de gatos diminui, os ratos fazem a festa e é aquele fuá.
Menino que nunca subiu em telhado deixa de aprender uma parte valiosa da vida: como caminhar medindo os passos, desenvolver o equilíbrio, atento ao peso e à medida das coisas. Tenho um primo que, nos idos cada vez mais idos, calculou mal a relação peso/altura/resistência e desabou com as telhas quebradas no meio do quarto da dona da casa, que, em vez de socorrer o pobre, andava de um lado para o outro se lamentando aos berros: “Meu telhado! Meu telhado!”
Bons tempos quando os ladrões de galinha andavam sorrateiros por eles. Quando a gente descobria um ninho escondido. Uma telha rachava e a água dos torós pingava na sala: era preciso colocar um balde, e aquele som ainda martela na lembrança. Ou quando se subia para fumar escondido e falar sobre coisas espantosas e proibidas em terra firme. Ou escrevia-se a giz um nome que o sereno da noite apagava.
Sem falar que as luas que nascem detrás dos telhados das casas são maiores e mais laranja que as que nascem detrás dos prédios, que surgem brancas, já acesas. Os telhados (mesmo dos sobrados) respeitam o horizonte, diferente dos edifícios, cada vez mais imponentes e pretensiosos.
Tenho sorte: estou cercado de vilas, onde é proibido construir prédios. Então, convivo com vários telhados. Isso se algum vereador não pretender mudar o Plano Diretor. Que continuo não sabendo bem para que serve, mas deve ser para proteger casas, telhados e quintais. E as bolas, gatos, ninhos, pingos, luas e sonhos que nascem entre as telhas.
Quando menino, caí algumas vezes de telhados. Devo ter batido a cabeça, ao que deve ser creditado perder tempo pensando tanta bobagem.
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