SOBRE O AUTOR
André Mellagi é paulistano há 50 anos. Psicólogo, escritor e fotógrafo, possui mestrado e doutorado em Psicologia Social. Atualmente trabalha em hospital. Colaborou com textos e fotos a diversas revistas literárias impressas e digitais. Publicou pela editora Patuá os livros de contos Bricabraque e Interfaces, além do e-book de minicontos Prosas Breves, Mínimas e Semifusas. Também participou de diversas coletâneas de literatura e fotografia. Instagram: @andre_mellagi
O CONTO SEMIFINALISTA
INTERFACES
André Mellagi
Ao terminar o circuito de exercícios, Luane posta uma foto do espelho da academia que reflete seu desempenho. Quase na mesma pose do dia anterior, mão esquerda na cintura e perna direita avançando um pouco na ponta do pé, com a diferença de outro conjunto de legging e top. Aceita o convite das amigas da faculdade de ir comer num restaurante japonês depois da aula. Marca interesse em várias festas no sábado seguinte e no mesmo horário, anunciando sua ubiquidade em se misturar aos brilhos encarcerados nas boates paulistanas. Abre um vídeo em que a câmera de segurança de um shopping flagrou um caso de combustão espontânea de um homem de 35 anos na Índia. A fachada da loja fez Luane lembrar que deveria trocar uma calça jeans que encomendou, porque o cós baixo salientava a barriga. Após o banho, prova a nova cor do batom #savage, prolongando os lábios com o rosto meio de lado e a toalha ainda enrolada na cabeça na pose para a foto. Antes de terminar um sanduíche de peito de peru, contabilizou 46 curtidas em sua foto em menos de dez minutos.
Beto encontra a foto pelo Google Imagens ao procurar por uma linha de produtos eróticos com a mesma hashtag #savage, confere a quadragésima sétima curtida na boca de Luane e passa a segui-la pelo Instagram. Na janela de seu apartamento no Rio consegue mais um match com uma morena que gosta de praia e de ouvir música eletrônica. Desliza sobre as fotos, tatuagem de serpente enroscando a cintura, outra de contorno de flor ainda para colorir, desabrochando do braço até o ombro. Deixa uma mensagem oi, tudo bem? num aceno sem resposta, um convite que permanece como envelope fechado, para quando a morena de flor tatuada e que costuma ir a Búzios volte para se conectar a outros tantos convites. Por via das dúvidas, Beto lança outra mensagem ao perfil da estudante de jornalismo apaixonada pela estética afro, avisando que haveria em breve uma exposição de Pierre Verger na cidade. Pensa que também poderia entrar em combustão espontânea neste final de semana, se não dissipasse o fogo que o consumia por dentro.
Beto recebe a notificação que há um interessado no sofá que colocou para vender uma semana atrás. Isadora tinha selecionado entre os favoritos que listou no site de vendas e, ao perceber que Beto estava online, faz uma pergunta a ele sobre quais as dimensões do sofá, se o tecido de jacquard estava puído e se trocasse o revestimento por um suede haveria um abatimento no preço. Beto tira algumas fotos mais detalhadas do sofá e manda para Isadora, que efetivaria a compra assim que recebesse um orçamento do tapeceiro para a reforma. Beto olha para a foto do perfil de Isadora, que bebia um chá ao lado de um vaso de gerânios que despontavam num degradê rosa. Escondia a boca na xícara mas as rugas denunciavam um sorriso envergonhado. Como precisa do dinheiro, Beto agradece o interesse e diz que aguardaria o retorno. Percebe que Isadora não tem crianças ao não se importar com a facilidade para limpar rabiscos e comida do sofá, nem com a afirmação de que era feito de madeira resistente. Beto não soube se amigo, parente, namorado ou namorada de Isadora ajudaria no carregamento, mas pergunta se ele poderia lembrá-la na semana seguinte e que, se for o caso, até ajudaria na entrega. Ela concorda e se despedem, Beto abre a categoria MILF de um site pornô e Isadora salva o número de Beto em seu celular antes de consultar o horóscopo. Isadora soube que Marte em Sagitário ressoava os gritos da mãe do quarto, com o prato do lanche espalhado na parede. O sofá seria a fortaleza de Isadora até os planetas decidirem quando haveria trégua dos xingamentos da mãe acamada.
Isadora divaga diante do vídeo do indiano em combustão que, se acendesse sua luz interior e dela viesse uma chama, poderia ser consumida com paz e sabedoria. Isadora coteja os astros com as runas e num fórum de esoterismo pergunta sobre possíveis correlações para o próximo ano entre as diferentes artes divinatórias. Uma usuária nova de nome Mel, que aparece no grupo num avatar de um desenho mangá de bruxa, envia um arquivo compactado com as previsões para os próximos cem anos, com a configuração dos planetas, a probabilidade das cartas e dos búzios, vaticinando que há chances de 85,6% de um grande evento iminente na vida de Isadora, com 64,2% de possibilidade que aconteça em fevereiro. Sem ter perguntado, Mel diz que pelo Feng Shui móveis ficam bem na posição sul do quarto e cores pastéis contribuiriam para acionar determinado equilíbrio de extrema necessidade. Isadora agradece e pergunta a Mel qual o signo dela, mas não obtém resposta. Mel não está mais no grupo. Saiu sem se despedir, assim como havia entrado sem se apresentar a ninguém. Mel edita o vídeo e viraliza com o homem agora atendendo um celular antes de entrar em combustão, causando queda nas ações do Vale do Silício.
Mel, num outro avatar de fada, libera de sua prisão na cidade do México um torrent de arquivos de jogos por onde Marcelo baixa e se gaba, no seu website, ter zerado o último God of War. Comenta o vídeo de combustão espontânea, que só viu alguém em flamas daquele jeito quando incinerava zumbis em Call of Duty. Depois Marcelo fornica através de um alienígena de RPG com Analu, incorporada numa valquíria, que pede para trocar seus perfis no Facebook antes de procurar tesouros no jogo.
Analu vasculha todas as fotos do perfil de Marcelo, encontra frases de motivação em paisagens idílicas, outras fotos de seu cachorro Kratos, pedidos de curtidas para uma criança que tocava piano numa estação do metrô. Descobre sua conta no Twitter, percorre os olhos lendo súplicas a Deus, rogações para se motivar a sair de casa, lampejos de euforia que logo eram abafados por alguma desilusão amorosa ou financeira. Analu cria uma pasta em seu computador para onde transfere as informações de Marcelo, copiando e colando fotos, frases, lugares onde foi. Descobre que ele mora em Cuiabá, tem 29 anos, solteiro. O telefone de Analu toca e atende uma ligação do marido que está a trabalho em Salvador. Informa que está bem e que fechará o acordo com uma rede de restaurantes de comida baiana para também abrir uma filial em Belo Horizonte. Ouve ao fundo gargalhadas, tilintar de copos, música alta. Analu agradece a informação do marido e desliga. Volta à aba do navegador e procura pelo nome do restaurante de alto padrão em Salvador, numa página de conteúdo gerado pelo usuário. Mesmo nunca ter feito qualquer refeição naquele estabelecimento, faz uma avaliação negativa do serviço demorado num jantar fictício. Relata que estava de férias na cidade e que passou por um constrangimento com alguns amigos devido à falta de preparo dos garçons, além de criticar a qualidade de alguns pratos que escolheu enquanto olha o menu do site do restaurante, mariscada salgada demais, cerveja quente, pedidos duplicados na conta. Pior que isso, só se um cliente pegasse fogo no meio do restaurante, como aconteceu naquele shopping na Índia.
A reclamação faz com que o garçom Vanderson tenha que dobrar o expediente para compensar a suposta falta de pessoal e contornar o mau desempenho no final de semana. Vanderson compartilha a crise de desemprego que se agrava, as relações precárias de trabalho, os avanços de um movimento insurgente numa tirania do Oriente Médio. Confere se houve resposta na caixa de e-mails de alguma empresa de comunicação sobre seu currículo, manda uma mensagem pelo WhatsApp ao namorado perguntando onde está. A demora na resposta o faz tomar mais uma lata de cerveja e divulgar uma petição. Nela exigia que uma empresa suspenda o uso de substância de efeito cancerígeno, usado na fabricação de tintas e na conservação de alimentos. Não descarta a ideia de que indianos estivessem expostos a uma substância comburente, provocando o incêndio que assistiu. Abre outro vídeo no YouTube sobre dicas de apresentação em entrevista e considera fazer a barba. Demove da ideia, ao abrir uma foto guardada na galeria de fotografias de seu celular, a lembrança do dia que estava abraçado com o namorado em Morro de São Paulo e que tanto adorava sua barba. Sem notícias dele e sem aviso para uma entrevista que valha sua graduação e pós em jornalismo, Vanderson desliga o telefone e acende um cigarro na janela. Luane, ao chegar do jantar com as amigas, confere o número de corações que recebeu das fotos, sorridentes e brindando temakis. Antes de vomitar, acaba com um pote de sorvete e depois assina por um perfil fake, a petição de Vanderson. Por via das dúvidas, ingere um sal de frutas ao sentir a úlcera arder ao ver pela quarta vez o vídeo daquele homem sendo carbonizado.
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