SOBRE O AUTOR
Cassio Giorgetti é paulistano, sociólogo formado pela PUC-SP. Esteve muito tempo entre os moradores de rua de São Paulo. Nas periferias da Zona Sul de São Paulo, foram anos de participação ativa no desenvolvimento de projetos e apoio às lideranças comunitárias. Como professor, teve oportunidade de dividir salas de aula com alunos e alunas do curso de Enfermagem da Universidade São Marcos, Serviço Social da Universidade de Franca e com adolescentes apreendidos na unidade Guaianazes II da Fundação CASA. Atualmente, faz pesquisa e produção para filmes documentais. É autor de seis livros de crônicas e obras de não ficção.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
A mulher do 45
Cadeiras tombadas, abajures, castiçais e outros objetos de decoração espalhados pelo chão; quadros pendendo nas paredes, uma mesa de vidro reduzida a cacos. Parecia que um furacão havia passado por aquela sala.
Dez minutos antes, os vizinhos tinham sido abruptamente acordados por um choro de criança e pelos gritos desesperados da mulher do 45.
A mulher do 45. Sempre fechada, apática, quando não escondia o semblante atrás de lentes escuras, o que era bastante frequente, olhava as pessoas de soslaio e não chegava a trocar meia dúzia de palavras com qualquer outro morador do prédio. Havia se mudado há pouco, três meses, talvez menos. A falar mal dela não faltava gente. Confundiam sua discrição com indiferença e acanhamento com arrogância.
Saia bem cedo pela manhã, apressada, segurando pelo braço um menino sonolento – a cara da mãe, por sinal, os mesmos traços, mesmos olhos – e retornavam de noite com sacolas de compras. Nos finais de semana não colocavam os pés para fora de casa. Ouvia-se o barulho alto da televisão todo o tempo.
Apenas uma pessoa sabia um pouco mais sobre a misteriosa mulher do 45.
O velho e já um tanto debilitado zelador do prédio se lembrava com clareza da tarde chuvosa em que, de plantão na portaria, dera-lhe informações sobre o apartamento que estava para alugar.
Na ocasião, não pôde deixar de notar, além do casaco cor de vinho que ela vestia, os ferimentos nos cantos da boca camuflados com camadas extras de batom. Percebeu também que suas mãos tremiam muito enquanto anotava, debruçada sobre o balcão, o telefone do proprietário do imóvel, custos, condomínio e tudo mais. Junto, o menino, sentado no chão do hall empurrando um caminhão de brinquedo sobre rastros de sapatos encharcados.
Plenamente convencido de que a idade avançada confere aos que dela usufruem, sem maiores consequências, o privilégio de se intrometer na vida alheia, o solitário zelador logo começou a fazer perguntas. Recebia respostas curtas e evasivas, mas não se dava por vencido. A cada palavra escutada a mão que segurava a caneta sacudia mais, até que, de repente, desabou sobre o papel, inerte como um animal abatido. Num ímpeto de dignidade a moça girou o corpo para trás e pediu carinhosamente ao filho que fosse brincar no salão de jogos do prédio, segundos antes de ser golpeada por um choro aflito e incontrolável. Atônito, arrependido sobretudo, o zelador ofereceu sua própria cadeira e a água morna da moringa que descansava sobre uma mesa de canto.
A mulher do 45. Esperava encontrar naquele pequeno edifício de quatro andares, sem elevador, um refúgio para escapar ao drama que vivenciava. Tomara coragem para por fim a um casamento de doze anos, sem que em nenhum deles tivesse conhecido coisa diferente do sofrimento. Um sofrimento silencioso, secreto, reprimido pelas leis do sagrado matrimônio às quais ela jurara lealdade. Considerava o menino um verdadeiro milagre, o amor gerado de uma relação absolutamente desprovida desse mesmo sentimento como a foz cristalina de um rio poluído. Ninguém mais sabia o calvário que tinha passado ao lado de um sujeito que agora simplesmente não a permitia bater as asas e voar. Promessas de novas e mais severas agressões chegavam a todo instante em forma de cartas, telefonemas, e –mails. A polícia foi avisada, os advogados consultados. Esperava encontrar naquele edifício respeitável o respeito que julgava ter perdido nos últimos anos.
O velho zelador andou com cautela por entre os destroços e restos de mobília caídos na sala. Pensou em recolher um porta-retratos dentro do qual reconheceu a foto do menino, ainda bebê, mas se levantou ao escutar o choro distante que vinha não se sabia de onde. Seguiu pelo corredor escuro que separava a sala dos outros cômodos, a passos ainda mais contidos, em direção ao clarão meio azulado irradiado dos fundos do apartamento. Com o canto dos olhos espiou o relógio de ponteiros fixado na parede. Onze da noite.
Quando, da porta da cozinha, viu a cabeça da mulher do 45 mergulhada em uma enorme poça de sangue, os joelhos não suportaram o peso do próprio corpo amortecido pelo choque e caíram sobre o piso frio. Ela estava com o mesmo casaco cor de vinho daquela tarde chuvosa em que a conheceu.
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