SOBRE O AUTOR
Hop é o escritor da foto do sapo. Suas histórias possuem duas marcas, uma é a melancolia implícita, mesmo naquelas que possuem intenção humorística; e a outra é que, quase sempre, sob o manto dos parágrafos, subjazendo às letras, existe uma segunda história – oculta –, a qual exige do leitor uma especial atenção para que a descubra. Semifinalista do concurso Pratas da Casa, da Casa Brasileira de Livros, Hop considera-se um jogral da literatura, fazendo mímicas, mágicas e sátiras com as orações e toda a sintaxe da língua portuguesa. Além disso, batalha para que suas histórias (algumas premiadas, como "Lie Down", "História em Cinzas" e "Clacláque") se sustentem por si sós, independentemente da figura do escritor. Aliás, por isso mesmo, o pseudônimo e a figura do sapinho lhe antecedem.
O CONTO SEMIFINALISTA
O Barato da Festa
1.
O PISÃO que eu dei fez um barulho surdo e ao mesmo tempo estalado. Tão forte, que a dor que eu senti não foi na sola do pé, mas no fim do fêmur, bem ali onde ele se encaixa entre a bunda e a cintura.
— Senhora? — diz o dedetizador, de dentro do meu banheiro.
Eu rachei o vinílico por baixo do tapete, com certeza. E com essa certeza sinto meus olhos começarem a boiar em água morna ao mesmo tempo em que meu rosto começa a esquentar em vermelhidão. Uma de minhas mãos espreme o celular na minha orelha, e através dele ouço uma voz de mulher que me diz assim; com uma voz de quem está mascando chiclete e lixando a unha ao mesmo tempo, ela diz assim:
— Ainda tem alguém na linha?
Tem pessoas com lycra imitando maiô na TV à minha frente. Estão pulando e esticando as pernas, tocando as pontas dos próprios dedões com as pontas dos próprios dedinhos e sorrindo. Por quê? Abaixo de um personal trainer com músculos inchados e redondos feitos jabuticaba, um balão irregular e pontiagudo pisca tentando me convencer: Coloque Agora as Coisas Ruins para Fora!!
Ligue Já!!
...
Ligue Já!!
...
Ligue Já!!
Claro que não. O homem que eu contratei para dedetizar meu apartamento, o que reclamou do preço que eu estava disposta a pagar, mas que apareceu aqui mesmo assim, está próximo a mim com um cano longo e metálico na mão, pulverizando inseticida nuns bichos com o que parece ser um taco de golfe. Ele anda pra lá e pra cá, cantarola e assovia enquanto que, com um macacão azul sujo, roça no chenille do meu sofá e unta meu teto com fumaça tóxica.
Esse cara irritante, ele olha pra mim e diz assim:
— Senhora?
E diz:
— Tudo bem?
Meu rosto está vermelho como se me estivessem sufocando.
No meu ouvido, a voz mole da garota mascando chiclete pergunta: — Alguém aí?
Eu seria hipócrita se dissesse que sim e que sim; mas aquele que desempenha reiteradamente a sua própria hipocrisia ainda poderia ser considerado como um hipócrita? Quero dizer, o estado transitório não deixaria de ser transitório para ser um algo perene, já que vivido de novo e de novo e de novo?
O calor um ano inteiro não é só uma estação, é? O frio o ano inteiro não deveria se chamar de solidão?
Eu penso em anotar isso para procurar a resposta mais tarde, mas a única coisa que eu faço é:
Para o cara, eu o olho, estendo-lhe um dedo, ainda sem emitir som, e digo: Espera. Ciente de que se eu falar qualquer coisa, de que se eu fizer qualquer som, esse som vai puxar o choro que eu estou estrangulando com a garganta, eu apenas articulo as palavras: Só um minuto. Já para a mulher que está no telefone comigo, a que pergunta “Alô-ou?! Senhora?”, mesmo sabendo que não é possível que ela me veja, ainda assim, para ela, eu só balanço a cabeça afirmativamente como se dissesse “Sim, acho que estou aqui”.
Na TV, o homem-bolha sorridente quer ver alegria.
Mudo de canal.
Na TV, uma professora de alongamento quer ver animação.
Mudo de canal.
Da sola do meu pé, ouço mais um créc estalado, e quando olho pra baixo é como se abrisse os olhos debaixo d’água. As lágrimas se acumulam fazendo tudo ficar turvo e ardido. As gotas pingam em direção ao chão como naqueles vídeos em primeira-pessoa nos quais vemos aviões lançando bombas atômicas em pessoas de carne que, logo depois, virarão lembranças de gás.
As duas gotas caem ao lado de patinhas marrons que se tremelicam embaixo da minha sandália. Quatro Z peludos agonizam enquanto eu os trituro com o calcanhar até uma bolha mucosa branca se formar pela intensidade com que moo, com que massacro a pobre barata.
— A maior vingança que podemos dar a eles — diz o dedetizador, confinado no banheiro em meio a uma fumaça verde de veneno —, é dá-los o oblívio.
Eu coloco o telefone no meu peito, sentindo a voz da garota vibrando em meus seios, e pergunto ao cara o que é “oblívio”.
Num canto, meu peixinho boia de cabeça para baixo dentro de uma água verde. Abaixo do meu pé, uma bolha branca e nojenta estoura e respinga no meu outro tornozelo.
E o cara diz: — Esquecimento.
A ligação da garota do RH da empresa para qual eu trabalho ainda está sendo sufocada pelo meu abraço de tia, mas, mesmo assim, ela continua falando que, apesar de eles terem depositado o valor das minhas férias, não seria possível me anteciparem os dias de folga.
Enquanto eu esfrego a sandália suja de gosma no pedaço limpo do tapete, digo a ela que acabei de tomar um pé na bunda de um relacionamento de quase três anos.
Na TV, a câmera dá um close no púbis das mulheres deitadas de lado, que abrem e fecham a perna como se fossem tesouras.
Digo à garota do chiclete que preciso desse tempo para reconquistar o meu homem, e que contei uma novidade para ele, mas que agora estou esperando a resposta.
Mudo de canal.
Na TV, uma professora de yoga me diz que devo colocar meus problemas numa caixa e devolvê-los ao seu devido lugar.
Mudo de canal, e desejo intensamente ser transportada para a era do obscurantismo, quando todos os processos causais eram explicados mediante fatores mágicos ou divinos. Para a época em que as motivações das ações boas ou ruins eram desimportantes, uma vez que mesmo nossos pensamentos eram atribuídos aos deuses que nos incitavam.
Do outro lado da linha, ouço o barulho arranhado da lixa em meio a estalos de estática que espocam em meu ouvido. Ainda para a mulher do RH, pergunto se não seria possível que eles fossem mais humanos, como o nome “RH” indica, e abrissem uma exceção para mim.
— Senhora — ela diz, e aí eu tiro o telefone do ouvido. Debaixo do tapete, percebo que realmente rachei o vinílico, e, para o dedetizador, eu falo que o certo é “dar-lhes”.
— Como? — ele fala.
Gritando lá de outro cômodo, ele diz: — Não entendi.
— Não é ‘dá-los’ oblívio — eu digo —, é ‘dar-LHES’. — Enfatizo a última sílaba, e respondo que “oblívio” parece significar algo bem pior que apenas “esquecimento”.
De dentro do que parece uma sauna de pesticida verde, o cara sai com um lenço tapando a boca e o nariz. O lenço parece tão sujo que me pergunto se não seria menos insalubre respirar sem aquilo. O cara então sai do banheiro abanando a mão e diz:
— O importante é que autocontrole é uma marca de elegância e refinamento.
Usando o mesmo lenço para enxugar a testa e o pescoço enquanto eu estou pisoteando as baratas que estão fugindo do banheiro, ele diz:
— Vingança é só uma paixão primitiva, que nos afasta da civilidade.
Na TV, o homem-inchaço está me convidando a mudar de vida. A ser uma nova pessoa. A catalisar todo o meu estresse num esforço contínuo para botar para fora tudo aquilo que me vem fazendo mal e me matando por dentro todos esses anos.
— Eu também me divorciei recentemente — diz a garota no telefone. O barulho molhado da mastigação dela masca as sílabas junto com o chiclete. — Ele foi tão babaca.
Têm baratas subindo pelas paredes e alcançando a quina entre elas e o teto. O dedetizador está segurando o que parece ser um termômetro digital, que ele achou no lixo do banheiro. Em vez de 37 ºC, o “termômetro” mostra um sinal de “+” na telinha, e o cara me pergunta o que é aquilo.
— A empresa tem uma política na qual são concedidos dois dias de folga para quem ficou doente.
Uma das maiores bênçãos que uma doença pode nos conceder é o tempo necessário para percebermos o quanto fomos relapsos conosco, pois, de outro modo, não estaríamos doentes. Ela nos desacelera para nos fazer perceber que nós concedemos tempo a tudo, menos a nós mesmos, sendo que tempo é justamente o nosso bem mais escasso.
— A empresa tem uma política na qual são concedidos dois dias de folga para quem acabou de se divorciar.
Com os lábios superiores encostados no nariz, digo a ela que não sou casada. E digo: Eu era a amante. Em seguida, estalo duas vezes os dedos para o dedetizador, para que ele faça algo a respeito da barata que está subindo em minha canela.
— Aqui na sua ficha diz que a senhora é casada — ela fala, e eu digo que é porque eu achava que iria me casar.
Então ela diz: — Mas você está na empresa há dois anos, e sua ficha nunca foi atualizada.
Na TV, o homem-água-retida quer alegria. A câmera foca em vulvas.
Para o cara da dedetização, eu ameaço: Nem ouse fazer isso. Sem emitir som, digo: Estou falando sério. E ele afasta de mim o taco de golfe com o qual iria espirrar toxina líquida na minha perna. Mais baratas saem do banheiro, da forma como imagino que tenha sido a fuga das pessoas por entre o mar Vermelho.
Enquanto ele dá um tapa na minha coxa flácida para afastar a barata que subia, e a câmera da TV foca em coxas torneadas, com peles lisas e lustradas de tão esticadas; enquanto a garota no telefone tira o chiclete da boca para dizer que pelo menos o ex-marido dela é um bom pai; eu sinto as lágrimas se acumularem salgadas nos cantos da minha boca antes de escorrerem pro queixo.
— Às vezes parece que a felicidade não compensa — diz o dedetizador, me oferecendo o lenço.
— O que eu fiz pra mostrar ao babaca, foi me matricular no crossfit — diz a garota.
Atrás dela, ouço a voz do chefe do RH mandando-a tirar as pernas de cima da mesa.
— É porque a felicidade não é o objetivo, mas sim a consciência de que temos liberdade de escolha.
Para a mulher no telefone, pergunto a ela se deu certo.
Para o dedetizador, eu só mexo a boca e pergunto: De escolher o quê?
E ela fala: — Sei lá, eu só fui dois dias, mas tive que pagar o semestre inteiro.
E enquanto assoo o nariz, o dedetizador me responde: — De nos prejudicar ou não.
Na TV, um guru me pede: Seja Positivo. Eu olho para o teste de gravidez que ainda está na mão do dedetizador, o com o “+” na tela. Na TV, um homem-bolha manda: Seja Responsável e mais alguma coisa que eu não ouço porque recebo um bipe e afasto o celular do ouvido para ver o que é.
É uma mensagem que diz: “CTZ D Q É MEU?”.
E é nessa hora que eu choro de vez. Me distraio e choro, e acabo pondo o lenço sujo nos olhos.
2.
DE TANTAS ACADEMIAS NA CIDADE, tinha que ser logo na mais cara? Naquela cuja diária é quase um terço da mensalidade de todas as outras?
Atrás de um balcão com tampo de vidro, uma garota com cara de quem acabou de sair do ensino médio – mas com um corpo que poderia ser capa de revista de mulher pelada e uma beleza de um papel principal de novela – sorri enquanto diz a mim: cartão recusado, senhora.
Olho meu perfil no espelho da parede procurando a resposta do porquê de todos me chamarem de senhora.
Enquanto a garota perde o interesse e começa a olhar o próprio celular – e eu percebo que o que parecia ser um piercing é uma verruga no nariz – eu começo a caçar mais cartões dentro da bolsa. Barulhos metálicos explodem ao nosso redor; anilhas batem em anilhas, que batem em barras de ferro, que batem em haltéres, que batem no chão emborrachado, que bate nos meus ouvidos.
Como um carteador numa mesa de pôquer, eu vou entregando meus cartões para a verruga ao mesmo tempo em que vou procurando, nos diversos ambientes, as salas que se separam dos demais aparelhos e ferros do ambiente central por paredes e portas de vidro, que é o que de fato vim fazer. Ao nosso redor, explodem gritos como os de homens das cavernas. Cada sala é uma coisa: a sala das lutas tem pessoas de quimono lutando com o vento; a sala da dança tem pessoas de viscolycra dançando com o ar; a sala da bike tem com pessoas pedalando por um caminho invisível.
Eu pergunto à verruga se não é irônico pagarmos a academia para que ela nos simule aquilo que poderíamos estar fazendo na vida real.
— Quê?
Pergunto a ela se os filmes não são uma espécie de voyeurismo; se não seria melhor vivermos aquilo em vez de vermos os outros vivendo.
— Quê?
E eu digo: Nada.
Então aponto para um dos ambientes, o mais afastado dos homens-inchaço suados, dentro do qual só consigo ver senhoras idosas e uma grávida chamada Cynthia.
— Aquilo? — ela olha para trás, e volta com um meio sorriso na boca. Então estica as sobrancelhas perfeitas para cima. E aí, soltando o ar rápido, e levando a cabeça para trás como num relincho, diz: — Se chama “pilates”.
Não entendi o deboche, mas noto que a testa dela não fica marcada nem quando ela estica as sobrancelhas.
Digitando o número do meu cartão com a ponta das unhas lilás, ela diz:
— Isso é pra... — ela diz sem concluir.
Então olhando para mim, ela diz: — Você não vai querer...
Depois se esticando por cima do balcão para me olhar de cima a abaixo, e sentando de novo, ela diz: — Pilates são quatrocentos por mês, senhora.
3.
EU ESTOU deitada de costas sobre uma bola. Estou rolando por cima dela como se estivesse abrindo uma massa de pão. Ao meu redor tem velhinhas levantando e abaixando aros de bambolê. Tem velhinhas puxando elásticos moles como queijo derretido. Velhinhas levantando e abaixando o braço como se estivessem ajudando um avião a pousar.
A nossa professora é mais nova que a média das alunas, mas mais velha que eu. É uma interseção entre o conjunto delas e o meu conjunto.
À minha frente, uma velhinha está sentada no chão com as pernas esticadas, encostando as mãos manchadas nos tornozelos inchados. Como estou deitada rolando em cima da bola, eu a vejo deslizando parada, da esquerda pra direita, e de volta da direita pra esquerda. A nossa professora pula de aluna para aluna. E eu estou rolando, encarando a velhinha que está a encostar os dedos nos tornozelos. Toda vez que essa velha está no centro da minha visão, percebo que ela me olha desafiadora, com as pálpebras semicerradas.
A nossa professora salta de uma aluna para outra, para outra, para uma, como um equilibrista tentando não deixar os pratos caírem.
Para a velhinha que me encara, eu digo:
— Você só consegue isso porque não tem mais cartilagem nas articulações.
A professora pede silêncio. Com paciência, ela pede para que todos prestem a atenção aqui.
Não há ninguém da minha idade nessa aula, exceto a Cynthia, a grávida cuja barriga está tão enorme que poderia ser a própria bola sobre a qual eu estou deslizando. A Cynthia é o que há. O suprassumo. Ela é divertida, é extrovertida, alto-astral. Não tinha como não ter ficado amiga dessa mulher nas últimas semanas.
Vamos!, pede a professora. Energia!, pede ela. E eu estou rolando.
Enquanto eu estou olhando Cynthia subir e descer um degrau de espuma, cada vez com um pé diferente, e estou vendo o volumoso rabo-de-cavalo dela balançar para lá e para cá como um pêndulo hipnotizante, que vai me fazendo me esquecer do tédio do lugar onde estou, eu ouço um pigarro: um “arrem!” simulado.
Quando olho, a velha da articulação está colocando o calcanhar atrás da nuca, me olhando diretamente nos olhos.
Cynthia está suada e tem uma bandana de basquete rosa ao redor da testa. Seu nariz está largo feito uma batata, e ela usa batom, mesmo aqui. Pelo espelho, eu me vejo mais pálida que calcinha de ficar em casa. Quando ela se senta ao meu lado, eu sinto o cheiro doce do suor dela misturado com um delicado Coco Mademoiselle.
Nunca disse a ela. Nunca lhe disse que só sei que é esse o nome do seu perfume porque eu acabei ganhando um exatamente igual.
— Menina, que fome — ela diz, se abanando.
Eu estou deslizando pra esquerda e pra direita, como se estivesse numa máquina de tomografia com defeito. Da direita pra esquerda, como se fosse um robô aspirador batendo na parede.
A professora diz: Sprint final! Agora eu quero gás!
As velhinhas estão a toda força, deixando de se moverem como o ponteiro do relógio que marca as horas para se moverem como o que marca os minutos. Uma tem incontinência; a outra tem diabetes; uma tem Alzheimer, e todas ainda estão muito melhores que eu.
Rolando.
À nossa frente, a velhinha da articulação está dobrada como um origami de pele e osso; seus braços e pernas estão como uma jiboia branca com manchas de sol enrolando-se num nó sobre si mesma.
Pra ela, a Cynthia diz:
— Dona Gertrudes?
Sem resposta.
E então:
— Dona Gertrudes?
As outras velhinhas estão se movendo como se embaixo d'água, mas sem estar.
Então, ainda sem som, a gente vê um polegar da origami subindo em meio à jiboia de membros embolados.
Tudo ok.
À Cynthia, entrego um Ferrero Rocher. Um daqueles gostosos, de avelã. Isso faz com que eu imediatamente possa ver a pupila dela se dilatar e empurrar as grandes íris castanhas para as bordas. Um eclipse oftalmológico. Como o Sméagol apanhando o Um Anel, ela tira o bombom da minha mão e o protege entre dois melões de leite que ela chama de peitos, e diz: — Obrigada!
Me abraçando suada e deixando uma camada de cheiro de Coco Mademoiselle sobre o minha camada de Coco Mademoiselle, ela diz:
— Esse é o meu preferido!
Sorrio, meneando a cabeça em afirmação.
Com a boca cheia e o lábio brilhando em marrom, ela diz: — Como você sabia?
Digo a ela que não sabia, mas que adoro o formato do Ferrero Rocher porque parece o Pomo de Ouro do Harry Potter. E ela diz:
— Ai! Eu também acho! E esse é o meu livro favorito.
Ao mesmo tempo em que vou guardando as minhas coisas na bolsa e me ofereço para ir guardando as dela, Cynthia vai me contando sobre quando ela descobriu a verdade sobre o Severus Snape. À medida que ela vai avançando sobre os detalhes da história e eu vou me perguntando se a Dona Gertrudes estava bem, porque quando havíamos deixado a academia ela ainda continuava dobrada e sem se comunicar, vamos subindo as escadas, depois as rampas, depois os elevadores, passamos pelos corredores da academia e acabamos chegando ao estacionamento, bem em frente ao carro dela.
Sem ar, depois de me explicar que ela achava que o Harry Potter iria namorar outra menina que não a com quem ele ficou no final, Cynthia diz: — Ih, você parou certinho em frente ao meu carro!
A voz dela ecoa entre os tubos de metal e pilastras de concreto do estacionamento.
Eu digo que foi coincidência.
— Menina, você trabalha com o quê? — ela diz.
Eu digo que sou autônoma e passo para ela a mochila da Tommy Hilfiger, a qual ela soca numa mala cheia de enfeites para uma festa infantil.
Sentando na tampa do porta-malas para o fazer fechar, ela diz:
— Sim, mas com o quê?
— Eu sou confeiteira.
Me fazendo segurar um urso de pelúcia do tamanho de um cachorro e mandando que eu o coloque no banco traseiro, de onde caem cartazes, painéis coloridos e línguas-de-sogra, ela diz:
— Mentira?
Passando o cinto-de-segurança por entre os melões e ligando o ar-condicionado enquanto se abana esbaforida, ela fala: — Eu estava procurando alguém para fazer o bolo do meu chá-revelação.
— Não é uma coincidência incrível?
E eu digo:
— Demais.
4.
MESMO QUE Love Story dure apenas 1h40, já estou assistindo-o há 3 horas, porque de vinte em vinte minutos pauso o vídeo para olhar a mensagem que flutua na tela do celular. O SMS que há uma semana me diz:
Infelizmente não posso. Prioridades.
Talvez a sorte e o tempo deem-mos outra chance no futuro.
Agora a responsabilidade é grande. Desculpe. M........
Eu dou um peteleco numa barata que estava em cima da tela, tapando o nome do remetente da mensagem, e dou play de novo no filme. A colherada do sorvete que levo à boca está fria e doce, mas também meio quente e com gosto de soro. Algumas lágrimas pingam do meu queixo para dentro do pote enquanto o dedetizador pede para que eu levante os pés. Quando ele se arqueia para fumigar a parte de baixo do sofá em que estou sentada, vejo o cós da calça azul dele cair e mostrar um decote da fenda de sua bunda. No bolso de trás da calça, está o lenço ainda sujo da minha coriza de dias atrás.
— O certo é ‘deem-NOS’ — eu digo, com ênfase na última sílaba, e o cara da dedetização diz que não disse nada.
Eu digo: Esquece.
Mas ele diz:
— Tá bom, mas aproveitando o ensejo... — e se levanta.
Parado em frente à TV bem na hora do beijo dos protagonistas, ele fala: — A senhora ainda não me pagou pelos aquários.
Num canto, empilhados um em cima do outro, estão vários aquários. Um monte de caixotes do tamanho de caixas de sapato, só que transparentes e de plástico.
Tentando ver entre o espaço do braço dele e a lateral da barrigona – tentando prestar a atenção no que os personagens dizem enquanto a campainha do apartamento toca –, eu digo que fui eu quem os comprou. Por que que ele está me cobrando por algo que fui eu quem pagou?
— Eu sei — diz ele, entrando de novo na frente da minha cabeça inclinada —, mas o serviço que a senhora quer que eu faça é pago adiantado.
O coroa do petshop que me vendeu os aquários disse que eles não são bons. Lá, debruçando-se por cima do balcão da loja e fazendo uma mão em forma de concha para que ninguém mais ouvisse, apesar de ele ser o dono da loja e não ter mais nenhum outro cliente além de mim à volta, ele me diz que ele importa esses aquários da Ásia por 20 centavos cada, e os revende cem vezes mais caro para os otários que os compram na loja.
Pedindo com a mão para que eu me aproxime mais, ele sussurra que os aquários são uma merda, e que desconfia que o plástico tem uma substância que pode causar uma série de problemas, entre eles aborto.
E eu digo: sem problemas.
Também em sigilo e confidência, olho ao redor, me inclino pra ele e sussurro: — Tô nem aí.
— Quanto você pagou neles? — diz o dedetizador, sem sair da frente da porra do filme.
Eu digo que não lembro e tento o empurrar para o lado com o pé.
— É mais do que você está me pagando?
Eu digo que não sei. Mas a verdade é que, já no caixa, adivinha quem sai de trás de uma cortina de miçangas e me impede de comprar os aquários a 20 centavos? A velha-origami. Ela repreende o marido, me repreende, diz que não gosta de mim e refaz todo o registro, de modo que eu acabo pagando por todos os aquários o dobro do que estou pagando mensalmente ao cara da dedetização.
— Levanta o pé — diz ele. Levanto, e pergunto se ele não vai abrir a porta. A campainha ainda está se esguelando.
Não sou seu empregado, ele me diz.
Bom, tecnicamente ele é, eu falo. Mas digo: Tá.
E digo: Deixa.
E vou eu mesmo atender o cacete da porta.
É a entrega do livro.
O entregador que o trouxe até mim fica esperando uma gorjeta por ter tido que subir treze andares de escada sem que pudesse usar o elevador quebrado.
Sprint final!
Agora quero gás!
“Puta!” é o que eu ouço quando bato a porta fingindo que não entendi o que ele quer. E, depois que coloco o livro sobre a bancada da cozinha, ouço um “e velha também!”.
A bancada ocupa metade do espaço, de modo que os eletrodomésticos têm que ficar acuados na parede como se estivessem sendo enquadrados pela polícia.
O livro que recebi é fino e de capa dura. Nele, lê-se “Manual da Arte dos Doces & Confeitarias”. As folhas são off-set. Ao lado de onde o coloquei, tem dois sacos de açúcar, um saco de farinha de trigo, uma caixa com uma dúzia de ovos, um vidrinho de corante, uma barata que eu espanto com um peteleco, uma lata de leite em pó, e um vidrinho de baunilha em cujo rótulo eu coloquei um adesivo escrito “mata-rato”. Quando fiz isso, foi para impedir que meu sobrinho bebesse a baunilha, mas esqueci de tirar o adesivo escrito à canetinha.
Por algum motivo, lembro-me do meu currículo.
Quando olho para trás, vejo o dedetizador sentado na minha cadeira, comendo o meu sorvete, vendo o meu filme.
Na TV, os protagonistas querem amor.
Dizem que os filmes e as peças de teatro nos servem de metáfora para que possamos aprender uma lição através da catarse. Mas, à frente do uniforme azul-sujo do cara da dedetização, o que pisca na tela da TV são dois atores tão lindos quanto a verruga da academia, o que me faz pensar se o amor abençoado que se prega não acontece só àqueles que foram agraciados com a beleza divina, com o famoso toque sagrado da sorte.
Fuxicando meu celular enquanto escorre sorvete derretido da colher para a gola do macacão, o dedetizador me pergunta:
— Quem é Michel?
No filme, os protagonistas estão se amando, e quando não respondo, o dedetizador se vira e vê que estou entornando o vidrinho de “mata-rato” na boca.
5.
SACOLEJANDO e com a bunda pinicando por causa do banco de couro rachado, pergunto ao cara da dedetização se ele não muda de roupa nunca.
— É por isso que se chama uniforme.
Peço a ele para virar à esquerda, e então à direita de novo e estacionar em qualquer lugar por ali. Ele me responde que aquela não é a rua que eu disse que seria para a qual nós iríamos.
— Eu sei — eu digo —, mas quero causar uma boa impressão.
Estamos no furgão verde da empresa “DEDÉ & TIZA: Ação!!”, que tem impresso na lateral os desenhos de um rato caído com a língua pra fora e de uma formiga com uma barra vermelha a cruzando. Abaixo deles, um balão irregular e pontiagudo diz: Coloque Agora as Coisas Ruins para Fora!! Ligue já!!
Pergunto ao cara se o nome dele é Dedé. E ele diz:
— Eu sou o Tiza.
Pela rua, estou carregando o bolo numa bandeja de madeira forrada com um papel laminado. Ele tem o formato cilíndrico e a altura de uma cartola. O calor faz com que a pasta americana fique meio bamba e os confeitos comecem a desgrudar como ímãs de geladeira velhos. Combinei com Cynthia de que terminaria o confeito na residência dela, para que ficasse mais fresco, e para que ninguém além de mim e da médica soubesse o sexo do bebê.
— A pasta americana não devia fazer isso — diz ele.
E eu pergunto: o que ele está fazendo? Combinamos que ele só entraria depois.
Olhando pro uniforme dele, eu digo:
— Você não foi convidado.
De trás de um dos bolsos da calça; do mesmo bolso em que ele guarda o lenço sujo, eu presumo; de lá ele tira um papel amassado e pergunta se isso é meu.
Eu digo que é um telegrama da empresa para a qual eu trabalho. Digo a ele que é da “Computadores Interfaces, Inc.” e que eles estão me comunicando para que eu retorne ao trabalho, sob pena de justa-causa por abandono de emprego.
Então digo:
— Eles escreveram “te comunicamos”, mas o certo é “comunicamos-TE”.
O dedetizador diz: quê? E eu só falo para ele jogar o tal papel fora, e apertar a campainha para mim.
Mas balançando a folha dobrada para a abrir, ele me fala que não é isso.
Lendo o papel, ele fala:
— É um recibo, de uma clínica sem nome. Sem endereço.
Clandestina.
E parecendo que está contando as sílabas em vez de estar lendo; parecendo que está aprendendo a formar as palavras agora, ele diz: — É por um serviço obstétrico de...
Eu equilibro o bolo só com uma das mãos e arranco o papel dele com a outra. Estamos em frente à casa de Cynthia. Antes de enxotá-lo de volta ao carro, pergunto-o o porquê de ele ter essa mania de revirar o meu lixo. Lá de dentro, a voz alta de Cynthia vem em ondas, metros antes de ela própria chegar à porta pivotante para me atender.
Num vestido de musseline verde, com bojo e um decote que faz os melões dela saltarem na minha cara, Cynthia aparece com o sorriso de sempre. Ah, que bonita. Os cabelos com babyliss lhe caem sobre os ombros enquanto ela me manda entrar. Ela olha ao redor, dizendo:
— Achei que você viesse com mais alguém.
Eu digo que só tem um cara esquisito e burro que me ajuda, mas que ele está no carro. Enquanto ela me leva por um longo corredor de porcelanato até uma cozinha com ilha, toda espaçosa e cheia de móveis planejados e eletrodomésticos de inox, pergunto se ela não podia deixar aberta a porta de trás, a de depois da cozinha, não a que dá para a área da piscina, mas a outra, a de vidro, para que meu ajudante possa trazer o restante do material do carro. E ela me diz:
— Como você sabe que tem uma porta atrás?
Coincidência.
Lá fora, os convidados estão reunidos com copos de cerveja na mão, todos ao redor da piscina. Na água, bolas de cores rosa e azul boiam pra lá e pra cá, o que me faz me lembrar das aulas de pilates.
— Aquele é seu marido? — eu falo.
— Qual?
Estou apontando exatamente para o cara de relógio de tira de couro e camisa pólo azul-claro. Há outros vários caras ao redor, todos com roupas e aparências parecidas. Mas eu aponto especificamente para um deles.
— O Michel? — ela diz. — É sim. Meu marido.
E sorri pra mim.
Só somos capazes de perdoar aqueles que não são felizes.
O que nos torna inimigos uns dos outros é a partilha da alegria, e não a do sofrimento.
Enquanto algumas mulheres entram na cozinha num falatório, e vejo que uma delas é a loira-verruga, pergunto a Cynthia se não é verdade que a desarmonia de uma das notas faz com que todas as outras notas do campo harmônico fiquem, também, dissonantes.
— Quê?
As mulheres riem de modo pateta entre si, todas alheias, e, enquanto isso, pergunto se ao querermos prejudicar o hospedeiro não acabamos prejudicando também, mas sem querer, o parasita.
— Quê?
Eu digo: se o melhor casamento é como uma amizade, mas a amizade entre um homem e uma mulher requer uma dose de feiura por parte de um deles, se isso mesmo é verdade, então se não seria contra as regras ambos serem lindos.
— A menos, é claro — digo —, que um deles não siga as regras.
— A menos, é claro — repito —, que as love stories existam apenas nos filmes dos quais somos voyeurs.
Mas ela não me ouve. A mulherada já está muito louca, muita bêbada, e arrasta Cynthia para fora.
Antes de sair pelas lâminas da porta de vidro que dão para a área da piscina, ela se vira e me diz; rindo, ela diz:
— O papel está na gaveta.
E eu pergunto: que papel?
Aí ela: — O do resultado, garota!
Ah, é. Esse papel.
Em resposta, balanço os vidrinhos dos corantes artificiais; um azul e outro rosa.
Quando elas saem, ouço três batidas no alizar da porta de depois da cozinha.
Por trás do vidro, vejo o cara da dedetização todo suado. Ele me trouxe as caixas cobertas com as lonas; o restante do material.
6.
AO FINAL da tarde, as pessoas finalmente começam a se reunir em torno da mesa cheia dos enfeites que pipocavam do porta-malas do carro de Cynthia. Os homens levantam copos de cerveja, e alguns fumam charutos que foram distribuídos por Michel. As mulheres tentam filmar a cena: Cynthia e Michel estão ambos entre a mesa com o bolo que eu acabei de confeitar e o painel em que duas crianças de desenho brincam. Cynthia é a grande estrela, e sorri para todos como uma celebridade saudada pelos fãs após receber o grande prêmio da noite. Já Michel agradece com o olhar a cada um dos presentes, saltando de um para o outro como uma professora de pilates.
Do meio da mulherada, a loira-verruga sai correndo e tropeçando, vindo na minha direção e na do cara da dedetização. Estamos próximo à cerca-viva, ao lado das nossas caixas empilhadas, vazias, mas cobertas por uma lona.
Ela nos pergunta com uma voz pastosa: — Onde posso vomitar?
Está verde de tão bêbada.
E o dedetizador diz: aí dentro.
Apenas com os olhos, Michel está agradecendo um a um. Apenas com os olhos. Um a um. Até me ver. Aí, seu maxilar cai até a altura do peito e a cara dele derrete ao redor da boca. Oi. Eu só sorrio de volta, abanando a mão com um tchauzinho.
Cynthia começa a cortar o bolo.
Sem emitir som, eu digo: Como vai?
A espátula dela começa a deslizar pela pasta americana. É menino ou menina?
Para nós, a loira da academia pergunta: — Aqui dentro mesmo?
O dedetizador diz: isso.
Michel contorna a mesa e começa a vir na minha direção, mas há muitas pessoas na frente, impedindo-o de me alcançar enquanto eu já vou indo embora.
Entre um jorro e outro, a loira pergunta: — Que isso?
A espátula está cortando o outro vértice do V do pedaço do bolo enquanto a loira segura a lona e vê uma dúzia de aquários de plástico, todos lambuzados de uma gosma amarela e marrom em seu interior. Pedaços de asas cascudas e patas em formato de Z residem no fundo deles.
Michel precisa tirar uma coisa que voou em seu rosto.
Um convidado precisa pisar em outra coisa correndo pelo gramado.
A espátula de Cynthia desce, para finalmente revelar um monte de algos que até que enfim dão uma agitação de verdade à festa.
Nem azul-celeste, nem rosa-bebê: dentro do bolo borbulha um recheio marrom-alado.
Rá!
Nessa hora, enquanto algumas delas passam por cima dos meus pés, o dedetizador diz:
— Cacete.
Ajudando a loira-verruga e levando-a conosco, ele diz:
— Isso não foi um pouco exagerado?
Aí, fazendo uma mão em forma de concha para que ninguém mais ouvisse, apesar de que ninguém mais nos ouviria por causa da gritaria; em total sigilo e confidência, eu olho ao redor, me inclino pra ele e, bem baixinho, digo:
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