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PRATA DA CASA | CONHEƇA OS SEMIFINALISTAS: YUSSEF FRANCIS KALUME

Atualizado: 4 de jun. de 2024




SOBRE O AUTOR


Yussef Francis Kalume nasceu no PiauĆ­, em 1979, mudando-se na adolescĆŖncia para BrasĆ­lia. De lĆ”, recĆ©m-formado em Jornalismo, partiu para o Rio de Janeiro ā€” onde reside desde entĆ£o ā€” a convite para trabalhar com Cinema. Em 2021, publicou o seu primeiro livro de contos, Ensaio sobre o fim, seguido dos romances Uma ficĆ§Ć£o cientĆ­fica pornĆ“ romĆ¢ntica (2022) ā€”, e AnhangĆ” (2023), todos pela Editora Urutau.



O CONTO SEMIFINALISTA


M.



ā€“ I ā€“Ā 


Com onze anos de idade, eu cheirava pĆ³ e brincava de boneca. Aos doze, engravidei, o bebĆŖ, nunca vi. Morreu espancado, ainda no ventre, por meu padrasto... seu pai.

ā€” Tem o diabo no corpo! ā€” ele dizia ā€” NĆ£o vale nada!

ā€” Eu te amo! ā€” ele dizia ā€” Volta aqui ou eu te mato!

ā€” Linda como a mĆ£e ā€” QUE DEUS A TENHA!

ā€” Vagabunda como a mĆ£e ā€” QUE O DIABO A CARREGUE!Ā 

Nove anos... Esperei nove anos para criar coragem. Naquele dia, ele viu o diabo... Sim, ele o viu, nos meus olhos. Fiz questĆ£o de ficar de olho aberto. Era tĆ£o bonito, assim, morrendo. Era tĆ£o belo, encarnado a sangue...

Foi a primeira vez que sorri. Devo ter feito o mesmo no velĆ³rio, por isso desconfiaram.

ā€” Estou livre!!! ā€” gritei de um lado.

ā€” Esteja presa! ā€” gritaram do outro.

Cada um na sua prĆ³pria jaula: meu padrasto num caixĆ£o, eu, na cadeia e meu filho, num vidrinho... E de que outra forma ele chegaria Ć  universidade? SĆ³ assim mesmo, dentro de um vidro.

Meu padrasto ainda vaga por aĆ­, arrastando correntes, sussurrando no meu ouvido... Eu mesma o pus no caixĆ£o, por que nĆ£o consigo enterrĆ”-lo?

Em cada olhar, cortejo ā€” em mulheres e homens, policiais e bandidos... No suor nojento que pinga em minhas costas. Nas lĆ­nguas, mĆ£os, paus... Todo dia meu padrasto ressuscita do inferno e me come, sem permissĆ£o.


ā€“ II ā€“


Ontem, conheci uma nova companheira de cela, a Su, e, ainda ontem, descobri algo que nunca havia passado pela minha cabeƧa: Sexo pode dar prazer, sabiam disso? Quem diria!? TĆ“ com quase quarenta anos, presa hĆ” tanto tempo... Tem pelo menos trinta anos que sou fodida e somente ontem... ā€” Su... Minha doce Su! Minha safada!

ā€œAi, Su! Isso! Isso! AĆ­, Su! AĆ­!!!ā€

ā€” Que tal um cineminha? ā€” brinca.

ā€” Prefiro uma praia!

ā€” Ou uma cachoeira?

ā€” Praia!

ā€” E que tal um filho?

ā€” O que houve com a praia?

ā€” Aceita um teco? ā€” retorna Ć  realidade.

ā€” Estica aĆ­!!!! ā€” aceito a realidade.

Ɖ bom ter a Su aqui por perto... outra mulher. Macho nĆ£o vale porra nenhuma, nem os de fora, nem os da famĆ­lia. Policial entĆ£o... O Pereira... Esse nasceu sem mĆ£e. Era gente da pior espĆ©cie. AliĆ”s, nem gente ele era. Maltratava demais as meninas... Mas era quem conseguia o pĆ³, por isso ninguĆ©m apagava o desgraƧado. Cobrava caro: cinquenta paus por uma merrequinha. Cinquenta paus enfiados com forƧa por tudo que Ć© buraco. O pĆ³? NĆ£o! O pĆ³ era pelo nariz mesmo. O nariz sempre foi do vĆ­cio, jĆ” o resto do corpo nunca foi meu, nem de ninguĆ©m! Minha buceta Ć© uma cadela sem dono, mas meu coraĆ§Ć£o pertence a ela, minha doce Su, minha putinha!!!

ā€” O quĆŖ? Qual a minha graƧa? Prazer, me chamam de M! Emily, nĆ£o! ā€œĆŠ-MƊā€, assim, sĆ³ a letra.

ā€” ā€œMā€ de quĆŖ?

ā€” ā€œMā€ de ā€œMā€!

ā€” Maria Madalena, Meretriz, Mulher Maravilha?

Ā ā€” NĆ£o! SĆ³ ā€œMā€ mesmo!


ā€“ III ā€“


Seis mil, quinhentos e setenta, seis mil quinhentos e setenta e um, seis mil, quinhentos e setenta e dois... Ficou bonita a parede, assim, toda riscadinha... Mas vou parar de contar. Deixa o dia mais longo. Na falta do que fazer, realizo outros tipos de cƔlculos, tipo: Quantos cigarros fumei durante esse tempo?

ā€” Cento e trinta e um mil, quatrocentos e quarenta.

Um cigarro tem cerca de nove centƭmetros, sendo seis deles fumƔveis. O resto Ʃ filtro. Isso sem calcular a diferenƧa de tamanho entre maƧo e box.

Se colocados em fila, sem o filtro, eu teria sete mil oitocentos e oitenta e seis metros e quarenta centƭmetros de cigarros fumados. Quase oito quilƓmetros.

Oito quilĆ“metros Ć© coisa pra caralho! Deve ser a distĆ¢ncia daqui pro mar. Essa cela tem o quĆŖ? Cinco metros quadrados?

Nove milhƵes, quatrocentos e sessenta e trĆŖs mil, seiscentos e oitenta minutos numa cela de cinco metros quadrados. Divido minha cama com a Su. Divido meu corpo com a Su. Meu cigarro... Cago na frente da Su! Isso hĆ” apenas uma semana e ela jĆ” diz que me ama. Quer casar comigo. Pra quĆŖ?! Meu Deus, Su!!! A Ćŗnica coisa que quero sĆ£o oito quilĆ“metros de distĆ¢ncia de ti, desse lugar!!! Pelo menos oito quilĆ“metros, numa praia, sem ter que olhar pra tua cara... Sem ter que falar com ninguĆ©m.

ā€” Que tal um cineminha?Ā 

ā€” Prefiro a praia!

ā€” Quer casar comigo?

ā€” Socorro!!!

Acho que vou matar o Pereira. Preciso de uns dias na solitƔria, longe da Su.

ā€” Puta que pariu, Su! Sai de perto de mim ou desisto do Pereira! Pereira??? Me vĆŖ uma de cinquenta!

Vampiro! Sanguessuga!!! SĆ³ tĆ” vivo porque sou viciada. Vai chegar a tua hora, Pereira! Nem que eu tenha que virar crente e largar o vĆ­cio. Um dia tu me paga!

ā€” Su?! Acorda, Su! Conversa comigo! Preciso de alguĆ©m... Su?! Eu te amo, Su!

Mais dez voltas em torno da cela, trĆŖs cigarros e cinco chutes na parede....

ā€” Acorda, porra!!! TĆ“ ligadona. Bora! Fala comigo! Pereira??? Volta Pereira! Eu te amo...

NĆ£o hĆ” nada acontecendo dentro de cinco metros quadrados, nem barulho de grilo.

ā€” Acorda, Su! Trepa comigo! Pelo amor de Deus! AlguĆ©m me dĆ” um tapa na cara!

Duzentos e trinta e quatro voltas na cela. Estou sem saco pra calcular o quanto Ʃ isso em quilƓmetros. Se for somar todas as voltas, vai dar pra ir e retornar Ơ lua umas sete vezes.

Mas, por que eu retornaria? Ficaria por lĆ” mesmo, sem a Su, sem o Pereira... CadĆŖ o Pereira? Preciso dele agora ā€” Retorno da Lua! ā€” Pereira?!

ā€” Filho da puta! Um dia eu te mato, Pereira! A tua sorte Ć© o meu vĆ­cio.


ā€“ IV ā€“


Seis mil, quinhentos e setenta e trĆŖs...ā€” Bom dia! O cafĆ© da manhĆ£ jĆ” estĆ” servido! Curtam um belo e ensolarado domingo na praia! Agora acorda de verdade que vai haver inspeĆ§Ć£o nas celas.

Dia de sol no pĆ”tio da penitenciĆ”ria. Era pra ter mais espaƧo do que minha cela de cinco metros quadrados, porĆ©m, imagina todas juntas num lugar que, se vocĆŖ olhar pra cima, dĆ” pra ver um pouquinho de azul, se olhar pra baixo, faz sombra na vizinha. Pelo menos, dĆ” pra ver outras caras alĆ©m da Su.

ā€” Ai, Su, como tu Ć© azeda!

Um dia vou conseguir fazer todas se deitarem de barriga pra cima, uma do lado da outra, sĆ³ pra poder fumar um cigarro e olhar pro cĆ©u... e ver a fumaƧa subir... subir...

Me lembro muito da praia. Da brisa, da areia, da Ć”gua de coco. Foi quando tive a ideia, olhando o vendedor abrir o coco. Imaginei meu padrasto no lugar do coco. Fui lĆ”, entĆ£o, e fiz. SĆ³ nĆ£o tive coragem de beber o sangue. Era nojento... Mas achei bonito o vermelho.

O que minha mĆ£e diria se estivesse viva? Nada! Minha mĆ£e morreu muito antes de falecer. No dia em que pĆ“s aquele canalha em casa. Devia ter me enterrado com ela... Minha mĆ£ezinha ā€” que Deus a tenha!

Sede! Por que fui pensar no meu padrasto? Deu vontade de uma Ć”gua de coco bem gelada. Ɖ a ressaca de ontem. Juro que atĆ© o sangue dele eu encararia agora.

ā€” Guarda! Me traga uma cerveja estupidamente gelada! Bebida pra todo mundo, por minha conta! Mas tem uma condiĆ§Ć£o: Que todas se deitem de barriga pra cima, uma do lado da outra, que eu quero fumar um cigarrinho e curtir o azul do cĆ©u. TambĆ©m traz uma Ć”gua de coco, por favor! No crĆ¢nio do meu padrasto!

NĆ£o dĆ” pra viajar muito nĆ£o, que logo soa o apito. ā€” Que foi? Quem se afogou? Esconde o baseado! ā€” Ɖ hora de voltar pra cela.Ā 

ā€” OlĆ”, Su. TambĆ©m te procurei. TambĆ©m senti tua falta. TambĆ©m te amo.


ā€“ V ā€“


A primeira vez que menstruei, eu nem achei estranho. JĆ” havia sangrado outras vezes... SĆ³ nĆ£o entendi por que sangrou sem doer nada, sem ter sido tocada por meu padrasto. Antes, ele dizia: ā€œDeixa eu dar um beijinho que para de doerā€. Naquele dia, mandou eu me lavar.

TambĆ©m nĆ£o sabia o que era TPM atĆ© parar numa penitenciĆ”ria feminina...

ā€” O que Ć©, Su? TambĆ©m tĆ” de TPM? Ɠtimo! Agora somos duas, dividindo os mesmos cinco metros quadrados. HĆ£n?! Ah tĆ”! TambĆ©m te odeio, Su!

TPM na prisĆ£o Ć© foda! Hoje, quis brigar no pĆ”tio com uma bonitinha que fez sombra no meu pĆ©. Toda arrumada, de minissaia, atĆ© perfume! Pra quĆŖ? Pra quem? Quis dar na cara dela! Quem mandou fazer sombra em mim? Quem ela acha que Ć©? Mal chegou na Ć”rea e jĆ” quer me mostrar o quĆŖ? Que o tempo passou? Que daqui a pouco ela sai e eu continuo mofando nessa merda? Como ousa cobrir o meu sol sagrado?! Quem mandou ter sombras tĆ£o cheias de curvas?

ā€” Su me disse que sou linda! Ela gosta de mim! Ela Ć© cega de paixĆ£o! Ela Ć© tĆ£o... doce.

Matou a mĆ£e com uma machadada... NĆ£o gosto nem de pensar. Disse que a mĆ£e a entregava na mĆ£o de alguns doutores, inclusive juĆ­zes, em troca de cesta bĆ”sica. Chegou a me confessar que atĆ© gostava. O problema Ć© que a mĆ£e, arrependida, quis tirĆ”-la dessa vida.

Eu entendo a Su. Quando se passa a vida toda sendo abusada, a gente perde a noĆ§Ć£o das coisas.


ā€“ VI ā€“


A menstruaĆ§Ć£o nĆ£o desce, a TPM nĆ£o cessa e a ressaca nĆ£o cura. Acho que vou vomitar...

ā€” Su? Acorda, Su! Eu te amo!

Nasce um coraĆ§Ć£o em mim e ele bate que nem tambor, que nem cassetete da polĆ­cia contra o escudo, em dia de rebeliĆ£o. TĆ“ tĆ£o emotiva que choro sĆ³ de ver a Su dormir... ā€” Olha, parece um anjo...

ā€” Acorda, Su!

Meu peito tĆ” maior. Meus quadris estĆ£o maiores... ā€” CadĆŖ a vadia das sombras voluptuosas, hein?! A que cobriu o sol do meu pĆ©? Quero ver quem Ć© a mais gostosa agora.

TĆ“ enfezada. NĆ£o cago hĆ” trĆŖs dias, mas mijo a cada dois minutos.

ā€œRecomenda-se uma dieta balanceada em fibras para evitar a prisĆ£o de ventreā€.

O ventre Ć© muito exigente. Imagina? Se eu tivesse essa marra toda eu comeria Strogonoff. Aqui, preso nĆ£o tem vez. A gente come o que tem e quem reclama fica com fome. AliĆ”s, nĆ£o tenho sentido muita fome nĆ£o e nem tenho cheirado. NĆ£o vejo o Pereira hĆ”, pelo menos, oito semanas. Oito semanas...

ā€” Pereira, filho da puta, eu falei pra nĆ£o gozar dentro!!!!!


ā€“ VII ā€“


Essa noite, minha mĆ£e me apareceu. NĆ£o sei se em sonho ou como assombraĆ§Ć£o. BalanƧava a cabeƧa e repetia:

ā€” Que desgosto, meu Deus! Que desgosto!

Chorei. Pedi pra ela cuidar de mim, mas ela apenas repetia:Ā 

ā€” Que desgosto! Que desgosto!

Cravei um machado em sua cabeƧa e ela sumiu.

ā€” Acorda, Su! Tem fantasma na Ć”rea.

Levanto, vasculho a cela inteira e nada! Estava tudo igual: as grades, o pĆ“ster do Roberto Carlos, a Su dormindo, os seis mil, quinhentos e setenta e blaus tracinhos riscados na parede... menos o machado. Onde consegui o machado? Por que nĆ£o o usei pra fugir daqui? Procurei em cada milĆ­metro dos cinco metros quadrados daquela cela e cheguei a uma conclusĆ£o: nĆ£o havia machado. No fundo, no fundo, nem parecia direito a minha mĆ£e. A histĆ³ria da Su era pesada demais... me impressionou. Por incrĆ­vel que pareƧa, ainda me impressiono.

ā€“ VIII ā€“


HĆ” uma vida aqui dentro e nĆ£o Ć© minha. HĆ” um coraĆ§Ć£o pulsando que nĆ£o Ć© meu. Eu nunca tive nada ā€” nada mesmo ā€” talvez por isso eu queira ter o bebĆŖ. Me contenta saber que parte de mim vai sair desse lugar, que parte de mim vai poder ver a praia e beber Ć”gua de coco.

Deve ter o quĆŖ? O tamanho de um amendoim? NĆ£o dĆ” nem pra ver. NinguĆ©m vai saber atĆ© a barriga caguetar.

Se for menina, vai se chamar Regina. Vai ser menina, tenho certeza. O mundo nĆ£o carece de mais homens, nĆ£o!

Regina... Era o nome da minha mĆ£e ā€” que Deus a tenha! Lembro pouco da minha mĆ£e. Bem pouco mesmo. Lembro dela passando os dedos nos meus cabelos preu dormir. Acho que sĆ³ lembro disso. Depois que ela morreu, essa funĆ§Ć£o ficou pro meu padrasto e jĆ” nĆ£o era tĆ£o bom. NĆ£o conseguia dormir.

Sinto muita falta dela, mesmo sem lembrar. Falta de praticamente tudo, atĆ© do rosto. NĆ£o consigo lembrar seu rosto... sĆ³ dos cabelos, longos e cacheados. Quando penso nela, me vem um vestido vermelho ā€” comprido e brilhante ā€” e seus cabelos esvoaƧados... Mas falta o rosto, entĆ£o completo com a face de Nossa Senhora.

ā€” Regina... Deve ser nome bĆ­blico, nĆ£o? Santa Regina? Acho que sim.

Do meu pai nĆ£o sei nada. NĆ£o o conheci. Minha vĆ³ sĆ³ falava dele como um monstro. Devia ser mesmo... Pra minha mĆ£e aceitar, depois dele, aquele porco, meu pai devia ser o prĆ³prio belzebu! E sabe como Ć©: filha do diabo...

Mas Regina, minha filha, nĆ£o! Ela serĆ” diferente: doce e pura. DormirĆ” numa rede armada entre duas palmeiras, ao som do mar, amamentada com leite de coco.

ā€” Salve, Regina! ā€” gritarĆ£o as gaivotas, servindo-lhe sardinhas, camarƵes e biscoito Globo ā€” Salve, Regina! Minha filha! Meu amendoim!


ā€“ IX ā€“


Acenderam os holofotes. Tudo em mim brilha! Meu cabelo brilha, minha pele brilha, meus peitos... Teve atƩ gente querendo me bater no pƔtio, nas tardes de sol. Eu brilhava mais que o sol.

Todas me olhavam. Desconfiadas, serĆ”? Daqui a pouco nĆ£o vai dar pra esconder. O amendoim vai virar azeitona, a azeitona vai virar maĆ§Ć£, a maĆ§Ć£ vai virar coco ā€” que vai espernear, espernear... atĆ© virar bebĆŖ.

Queria eu espernear, espernear atĆ© a cadeia me parir, pelo menos por um dia. Iria te levar Ć  praia, entrar no mar com o barrigĆ£o, que nem a Leila Diniz, livre...

Tenho saudade de pisar descalƧa na areia. Aqui nĆ£o tem areia. Se tivesse, a gente cavava e fugia. Ɖ tudo cimento e ferro. Tudo cinza... como as pessoas.

A Su me disse que estou mais corada.

ā€” Deve ser de vergonha. Tanta gente me olhando...

ā€” NĆ£o! ā€” retrucou ela ā€” VocĆŖ estĆ” diferente.

Dividir a cela com uma louca apaixonada Ć© uma pĆ©ssima ideia. NĆ£o hĆ” um sĆ³ lugar para se ficar sozinha. Nenhum sofĆ” na sala, nenhum banheirinho com porta. Nada! Somente cinco metros quadrados, com um beliche de um lado e o sanitĆ”rio do outro. A Su participa de tudo na minha vida. Sabe quantas vezes vou ao banheiro, o tempo que levo no banho, o dia que menstruei pela Ćŗltima vez. Reconhece atĆ© o aroma caracterĆ­stico dos meus peidos ā€” se sĆ£o meus ou nĆ£o ā€” durante os banhos de sol no pĆ”tio.

ā€” Me deixa ter privacidade, Su, pelo menos, dentro de mim!!!

ā€“ X ā€“


NinguĆ©m mais liga pros meus seios, a pele corada e os cabelos brilhantes. A estrela do momento Ć© a barriga ā€” meu sol ā€” e o mundo gira em torno dela. EstĆ” bem aparente, redonda, com o umbigo saltado e perninhas que dĆ£o chutes.

NĆ£o sei se lĆ” fora Ć© assim, mas aqui na prisĆ£o, toda mulher, por mais durona que seja, se sente um pouco mĆ£e diante de uma grĆ”vida. Ou, pelo menos, algo parecido com avĆ³. Passaram a me oferecer bolos e biscoitos, trazidos por seus familiares em dia de visita.

Quem esquartejou o marido me serviu chĆ” para cĆ³lica. Quem matou a patroa cedeu-me um lugar ao sol. A que maltratava os filhos chorou e beijou os meus pĆ©s. AtĆ© as carcereiras sorriam e me davam bom dia. Me protegiam, me paparicavam... Receitavam remĆ©dios e mandingas passadas por geraƧƵes e geraƧƵes de ciganas e pais de santo. Receitas para todo tipo de dor, nĆ”usea, cansaƧo, gases e inchaƧo nos pĆ©s... Um verdadeiro manual prĆ”tico da gestante, bem melhor que o Dr. De Lamare.

Mas nem tudo Ć© perfeito. Mais cedo, encontrei o Pereira no corredor. Esticou uma carreira no chĆ£o, preu cheirar de quatro, grĆ”vida. Meu nariz Ć© do vĆ­cio, sempre foi, mas meu corpo pertence Ć  Regina. O corpo todo: meus peitos, minha barriga, minhas costas que doem... Ɖ tudo dela... menos o nariz. O coraĆ§Ć£o? No momento, o coraĆ§Ć£o tĆ” acelerado demais para sentir alguma coisa. Curvei-me como uma porca que fuƧa a terra, sobre as quatro patas ā€” o corpo que pertence Ć  Regina prostrado ao chĆ£o. O focinho pra farinha, o rabo pra linguiƧa... tĆ” servida, ao Pereira, a feijoada. Me comeu, acariciando a barriga, enquanto eu cheirava o pĆ³, grĆ”vida.

Ā ā€” Se for menina, eu pego pra criar ā€” falou o desgraƧado, babando nas minhas costas.

Meu padrasto me sorriu ao ouvido... BuuuĆŗ! Esperneei... Esperneei que nem vocĆŖ me ensinou, minha filha, pra ver se ele me largava. Esperneei, enquanto ele me sufocava contra o chĆ£o para silenciar o meu grito. Duas carcereiras me socorreram, com a ajuda de um agente. Antes, passariam direto, sem ver nada.

Pereira jamais vai saber que Ć© o pai. Nunca irei contar. Gente que nasce sem mĆ£e nĆ£o tem o direito de ter cria. NĆ£o respeitaria nem o prĆ³prio sangue.


ā€“ XI ā€“


Hoje, pela manhĆ£, recebi a visita de uma assistente social. Regina ficarĆ” comigo os primeiros meses para amamentar. Depois, vai para um abrigo, sob a responsabilidade do Estado, atĆ© que eu cumpra a pena. Se tudo der certo, saio em cinco anos por bom comportamento. A JuĆ­za determinarĆ” se terei, ou nĆ£o, a guarda da crianƧa.

Rezarei dois Pai Nossos, trĆŖs Ave Marias e cantarei o Hino Nacional toda manhĆ£, logo que me levantar, juro! Farei a Primeira ComunhĆ£o, a Crisma e o Programa de SocializaĆ§Ć£o do Governo. E, acima de tudo, suportarei com paciĆŖncia todo o amor descontrolado e dedicado a mim, vinte e quatro horas por dia, pela minha companheira de cela, Su. AmĆ©m! Declaro, tambĆ©m, para os devidos fins, que faz parte do meu novo comportamento, um linguajar mais formal. AmĆ©m de novo!

ā€” Meretriz que te deu a luz, Su! DĆ” uma forƧa aĆ­! Ou melhor: Seja solidĆ”ria com a causa, Su, por obsĆ©quio!


ā€“ XII ā€“


As Ɣguas do mar batem no meu pƩ e recuam. Retornam acima dos joelhos e mais uma vez, molhando tudo: pernas, roupa, lenƧol... Como o mar veio parar aqui? Adiante, Regina sorri para mim, num barquinho.

ā€” Su? Acorda, Su!

Um, dois, trĆŖs, quatro

Um, dois, trĆŖs, quatro

ā€” Su? Me ajuda!

Um, dois, trĆŖs, quatro

Um, dois, trĆŖs, quatro

ā€” A bolsa estourou, Su. Acorda!Ā 

Um, dois, trĆŖs, quatro

Um, dois, trĆŖs... ā€” e vem o choro.

Posso atƩ ouvir o som dos sinos soarem: Blem! Blem! Blem!

ā€” Salve Regina, a inocente! A Ćŗnica, no meio de tanta gente ruim!Ā 

Seu choro ecoa pelos corredores, acordando as presidiĆ”rias. Blem, blem, blem! ā€” batem com forƧa suas tigelas contra as grades. Todas, sem exceĆ§Ć£o, celebram a tua chegada.

ā€” Salve Regina, a que alcanƧou a liberdade!!! Salve Regina, a coisa mais fofa desse mundo!

Carrego-a comigo o tempo inteiro no braƧo. NĆ£o a largo por nada. Se eu ficar de pĆ© sem ela, caio pra trĆ”s, por falta do peso na barriga. O corpo acostuma em nove meses. Imagina o coraĆ§Ć£o...

A assistente social veio conversar comigo. Trouxe a psicĆ³loga junto.

ā€” SĆ£o seis meses aqui, minha filha, pra mamar. Depois, vocĆŖ vai para um lugar melhor. Se minha avĆ³ estivesse viva, vocĆŖ iria morar com ela. LĆ” era tĆ£o bom! NĆ£o tinha praia, mas havia um aƧude. E galinha ciscando, e terra, e pĆ© de feijĆ£o plantado no quintal... Me perdoa, viu? Me perdoa por ficar triste! Por querer manter-te presa aqui comigo, pra nĆ£o me sentir tĆ£o sĆ³.

A que rodou com crack fez um macaquinho rosa, com o nome Regina bordado. A que incendiou a tia ofereceu-me o ombro e chorou comigo, atĆ© o fim do dia, quando voltamos para a cela. A Su me recebeu em silĆŖncio. Massageou os meus pĆ©s, ajudou-me com as fraldas do bebĆŖ, madrugada adentro, sem dizer uma palavra. Tarde da noite, tomou Regina nos braƧos e pediu para que eu descansasse. NĆ£o queria. SĆ£o apenas seis meses. NĆ£o dĆ” tempo pra dormir, sĆ³ pra sonhar. Ɖ muito pouco, para quem jĆ” passou tanto tempo presa, para quem ainda tem que esperar cinco anos.

Fui esquecida na prisĆ£o de propĆ³sito, pra deixar de existir... Meu padrasto era afilhado da Delegada. Sumiram com minha ficha, apagaram o meu nome. SĆ³ deixaram a letra M. Quem iria gritar por mim? NĆ£o hĆ” ninguĆ©m por mim lĆ” fora e, aqui dentro, nĆ£o tenho voz. Eu nĆ£o existo! Mas todas ouviram o teu choro, Regina. Agora sabem que estou aqui, que sou mĆ£e. GraƧas a vocĆŖ, filha, sairei em cinco anos, por bom comportamento. Acharam justo, jĆ” que ninguĆ©m, alĆ©m de mim, sabe hĆ” quanto tempo estou presa, nem o por quĆŖ, nem quem sou. Cinco anos Ć© nada, pra quem jĆ” esperou tanto... Mas Ć© tempo demais para quem ficarĆ” tĆ£o pouco ao teu lado, filha. Seis meses... Seis meses Ć© toda uma vida para quem acabou de surgir no mundo.

ā€” Adeus, Regina. Saia antes que te venham recordaƧƵes deste lugar. Retorne, apenas, para me visitar, para que nĆ£o te esqueƧas de mim tambĆ©m...


ā€“ XIII ā€“


Nunca havia recebido visitas... Sou a pessoa mais antiga nessa penitenciĆ”ria, tanto do lado de cĆ” da cela, como do lado de lĆ”. NĆ£o hĆ” uma prisioneira ou carcereira, nem copeira ou agente mais cansada desse lugar do que eu.

As pessoas entram e saem, mudam de patente... morrem.

ā€” Prazer, me chamo M.

Trouxeram minha filha apenas os trĆŖs primeiros meses. Depois, nĆ£o a trouxeram mais. Na Ćŗltima vez, jĆ” nĆ£o queria mamar, apenas chorava.

ā€” Toma peitinho, filhinha, ainda tem leite. Toma.

BebĆŖ nĆ£o tem vivĆŖncia suficiente para exercitar a memĆ³ria. Regina acabou esquecendo quem sou. AliĆ”s, todos esqueceram. Quando a levaram, voltei a ser uma presidiĆ”ria comum, sem ninguĆ©m pra chorar por mim. No momento, o Ćŗnico choro que se ouve nos corredores Ć© o meu.

NĆ£o chorava desde os onze anos de idade. Foi quando minha mĆ£e... Meu padrasto conseguiu espremer as Ćŗltimas gotas que restavam. Depois disso, meus olhos secaram.

VocĆŖ trouxe de volta o brilho no meu olhar, Regina. Agora, esse brilho escorre por meu rosto, salgando-o que nem o mar. Mas ninguĆ©m me ouve.

FaƧo como me ensinou, mas Ć© diferente: choro pela dor que sinto, vocĆŖ, nĆ£o. VocĆŖ chora pela vida. E hĆ” tanto leite no meu peito para silenciar o teu choro... Escoa por meus olhos, transformado em lĆ”grimas.

Dizem que uma vĆ­tima de estupro nĆ£o deve gritar ā€œSocorro!ā€, pois assustaria a ajuda. Ao invĆ©s disso, deve-se gritar: ā€œLadrĆ£o! LadrĆ£o!ā€, que logo aparecerĆ” uma multidĆ£o louca por um linchamento.

De uma forma ou de outra, esse tipo de pensamento Ć© responsĆ”vel por meu padrasto estar morto e eu aqui, presa. Deveria ser o contrĆ”rio. O certo seria o contrĆ”rio. Queria ver aquele filho da puta aguentar a cadeia, ainda mais com o histĆ³rico que tinha. Faria questĆ£o de visitĆ”-lo, de gritar para todos os presos ouvirem o que ele fazia comigo, quando crianƧa, enquanto ainda chorava a morte de minha mĆ£e. Iria implorar para que eu fizesse o que fiz. Morrer foi pouco. Queria eu estar no lugar dele.

Passei a infĆ¢ncia inteira berrando por socorro. Jamais alguĆ©m apareceu. Nunca houve quem gritasse por mim. Naquele dia, todos gritaram contra.

ā€” Foi ela! Foi ela!

As pessoas adoram linchamento. Quem sĆ£o elas pra julgar se o que fiz Ć© mais monstruoso que seus desejos de justiƧa? Quem sentiu a minha dor? Fui presa por cortar a cabeƧa do meu padrasto com um facĆ£o. Por pouco, escapei de ser esquartejada por uma multidĆ£o enfurecida, justiceira e sem motivo. Gritei por socorro, mas eles preferiram ouvir os que gritavam ā€œLadrĆ£o!ā€. NĆ£o deram a mĆ­nima importĆ¢ncia ao que passei. Sangue derramado chama mais atenĆ§Ć£o do que sĆŖmen na garganta de uma crianƧa. Agora, estou eu gritando mais uma vez por socorro, num lugar onde gritar ā€œladrĆ£o!ā€ nĆ£o faz o menor sentido.

Depois que minha filha se foi, todas ficaram surdas. Mesmo presa, nĆ£o sabia o significado de solidĆ£o... atĆ© agora.


ā€“ XIV ā€“


Cento e cinquenta e sete milhƵes, seiscentos e oitenta mil segundos sem minha filha. Ɖ assim que tenho contado o tempo por aqui, jĆ” que os dias de cĆ”rcere nĆ£o me dizem mais nada.

HĆ” cinco anos, Regina livrou-se do meu ventre. Eu continuo presa. Uma ova que estaria livre por bom comportamento! Nem que eu virasse freira sairia desse lugar. Me largaram aqui para ser esquecida. Pra criar raiz e morrer. SĆ³ assim mesmo pra sair: morta.

Regina engatinhou, ficou em pĆ©, aprendeu a andar... a falar mamĆ£e pra uma outra mĆ£e, a falar papai pra um canalha qualquer, com certeza, melhor que o Pereira.

ā€” Ɖ chegada a tua hora, Pereira!

Encontrou a minha filha, semana passada. Quem a adotou Ć© conhecida dele, mulher de um colega.

ā€” A menina Ć© bonitinha ā€” disse ele. ā€” E cheirosa.

Juro que, se tivessem me dado a oportunidade de sair hoje daqui, por bom comportamento, nĆ£o teria feito diferente. PorĆ©m nada mudaria na minha vida, nem prolongaria a minha pena. O que eu tinha a perder? Um punhal cravado em sua garganta, rasgando atĆ© o queixo. Do seu bolso, apanhei um papelote com uns vinte gramas de pĆ³ e voltei para a cela.

Eram tantas carreiras esticadas, que se confundiam aos risquinhos na parede, da contagem dos dias. Mil oitocentos e vinte e seis dias sem Regina. Oito mil, setecentos e quarenta e oito dias presa nessa cela.

O coraĆ§Ć£o passa de sessenta para cem batimentos por minuto. De cem a cento e setenta. Oitenta mililitros de sangue por pulsaĆ§Ć£o; onze litros por minuto. Ɖ mais sangue do que tenho no prĆ³prio corpo.

Pra que tanta pressa? FicarĆ” que nem eu, circulando, circulando... Andando quilĆ“metros sem sair dos mesmos cinco metros quadrados.Ā 

Duzentos batimentos por minuto... Doze gramas de pĆ³ no sangue. O resto, eu deixei pra lĆ”. Sairei deste inferno.

Dois Pai Nossos, trĆŖs Ave Marias! Cento e setenta e trĆŖs voltas em torno da cela... Finalmente, estou livre! SaĆ­ hoje da prisĆ£o, Ć s onze horas da manhĆ£. Consegui minha alforria pintando o nariz de branco e, depois, de vermelho, a noite toda, atĆ© sangrar. Cheirei o suficiente para me deixar uns dois ou trĆŖs dias ligadona, mas, antes do amanhecer, adormeci. Esse foi o meu habeas corpus...


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